« Num certo país, o povo vivia adormecido numa paz que não era paz , e numa guerra que não era guerra. Esse povo foi educado a agir sempre em conformidade com os ditames da lei, que vinha de cima , e que não se questionava se estava bem ou mal. Tal como os pais recomendavam às crianças que fizessem isto, que não fizessem aquilo , esse povo era continuamente lembrado do que podia e não podia fazer, do respeito que devia à autoridade - que sempre tinha razão!- , mesmo que a razão não fosse mais do que a sua imensa autoridade.
Nesse país havia dois mundos, o dos que estavam com a autoridade e eram a autoridade, todos garbosos, altivos, gozando da liberdade de exercer sobre os outros a sua autoridade e até da sua benevolência, que colhiam o leite e o mel que as obedientes abelhas operárias produziam. E o mundo dos que não entravam no reino dos eleitos e apenas podiam aspirar a que o olhar benemérito do poder os elevasse da triste condição de serem apenas povo.
Nesse país, tal como em certas casas, havia um quarto escuro, onde não podiam entrar as crianças, era tabu falar no que lá se escondia, mesmo que todos soubessem o que lá estava. Era o quarto dos horrores: um chefe que ordenava que os primogénitos do povo fossem imolados no fogo da guerra pela grandeza da pátria imperial, um grupo imenso de sombras, com olhos de abutre e ouvidos caninos, que perseguiam, prendiam, torturavam os cidadãos «mal comportados», que não viam na razão da autoridade as sem-razões dos seus desmandos. Lá fechado estava também o espelho da verdade que mostrava a verdadeira cara do povo: mal nutrido, ignorante, analfabeto, espoliado, vergado pelo peso da miséria e da falta de esperança. De vez em quando, alguém espreitava à porta, e como da caixa de Pandora saltavam todos aqueles males aí fechados, e viam-se claramente em todos os seus horrores.
Até que um dia, numa radiosa primavera, festivos acordes de músicas proibidas se soltaram no ar. O povo ergueu-se do leito triste e viu que havia ainda esperança , que era possível, já sem a «velha autoridade», prosseguir o seu caminho, mais livre e mais pleno de confiança, recuperar de todas as enfermidades mentais e físicas que anos de um severo paternalismo oficial lhe provocaram.
Sem a sombra «protectora» da paternal autoridade antiga, nem todos souberam guiar-se nas encruzilhadas da sua nova condição de seres livres. Alguns perderam-se mesmo em estranhos e impróprios caminhos. No, entanto, passados anos, olhando para trás, esse povo vê que, embora errando aqui e ali, recuperou uma nova energia, um novo querer, e uma consciência de que está em si a riqueza da sua pátria, e que não há autoridade que possa impor uma razão que não seja a da verdadeira Razão. Hoje esse povo pode mandar os seus filhos à escola e movimentar-se livremente no espaço da sua pátria e fora dela, porque o estrangeiro deixou de ser o «inimigo», a verdade pode ser dita sem se temer pela vida e a dignidade das pessoas é a base fundamental da lei de todos.
Esta fábula podia aplicar-se ao nosso 25 de Abril. Quantos de nós devemos tanto daquilo que hoje somos e temos à coragem daqueles capitães que na madrugada desse dia ousaram romper todos os medos, quebrar os grilhões do marasmo e da rotina e abriram as portas do grande cárcere em que se tornara Portugal, ao longo de tantos anos de regime autoritário. Com certeza que não merece o mesmo aplauso de todos os que lêem estas linhas essa data, mas o simples facto de podermos ser diferentes e escrever o que pensamos só acrescenta mais um argumento à defesa do movimento dos capitães de Abril.
Quando os factos se deram, era eu ainda um estudante muito jovem, mas logo me apercebi do que estava em causa. Hoje recordo, ainda emocionado, a euforia e a ansiedade que então se viveram. Ouvíamos a Rádio com uma devoção quase religiosa, e bebíamos as palavras dos comunicados com a sofreguidão de querer saber mais e mais. Mas, mais do que todos os medos e desconfianças, havia em cada olhar a esperança de que o futuro estava ali pronto a ser emendado e corrigido num sentido mais aberto e feliz. »
Nesse país havia dois mundos, o dos que estavam com a autoridade e eram a autoridade, todos garbosos, altivos, gozando da liberdade de exercer sobre os outros a sua autoridade e até da sua benevolência, que colhiam o leite e o mel que as obedientes abelhas operárias produziam. E o mundo dos que não entravam no reino dos eleitos e apenas podiam aspirar a que o olhar benemérito do poder os elevasse da triste condição de serem apenas povo.
Nesse país, tal como em certas casas, havia um quarto escuro, onde não podiam entrar as crianças, era tabu falar no que lá se escondia, mesmo que todos soubessem o que lá estava. Era o quarto dos horrores: um chefe que ordenava que os primogénitos do povo fossem imolados no fogo da guerra pela grandeza da pátria imperial, um grupo imenso de sombras, com olhos de abutre e ouvidos caninos, que perseguiam, prendiam, torturavam os cidadãos «mal comportados», que não viam na razão da autoridade as sem-razões dos seus desmandos. Lá fechado estava também o espelho da verdade que mostrava a verdadeira cara do povo: mal nutrido, ignorante, analfabeto, espoliado, vergado pelo peso da miséria e da falta de esperança. De vez em quando, alguém espreitava à porta, e como da caixa de Pandora saltavam todos aqueles males aí fechados, e viam-se claramente em todos os seus horrores.
Até que um dia, numa radiosa primavera, festivos acordes de músicas proibidas se soltaram no ar. O povo ergueu-se do leito triste e viu que havia ainda esperança , que era possível, já sem a «velha autoridade», prosseguir o seu caminho, mais livre e mais pleno de confiança, recuperar de todas as enfermidades mentais e físicas que anos de um severo paternalismo oficial lhe provocaram.
Sem a sombra «protectora» da paternal autoridade antiga, nem todos souberam guiar-se nas encruzilhadas da sua nova condição de seres livres. Alguns perderam-se mesmo em estranhos e impróprios caminhos. No, entanto, passados anos, olhando para trás, esse povo vê que, embora errando aqui e ali, recuperou uma nova energia, um novo querer, e uma consciência de que está em si a riqueza da sua pátria, e que não há autoridade que possa impor uma razão que não seja a da verdadeira Razão. Hoje esse povo pode mandar os seus filhos à escola e movimentar-se livremente no espaço da sua pátria e fora dela, porque o estrangeiro deixou de ser o «inimigo», a verdade pode ser dita sem se temer pela vida e a dignidade das pessoas é a base fundamental da lei de todos.
Esta fábula podia aplicar-se ao nosso 25 de Abril. Quantos de nós devemos tanto daquilo que hoje somos e temos à coragem daqueles capitães que na madrugada desse dia ousaram romper todos os medos, quebrar os grilhões do marasmo e da rotina e abriram as portas do grande cárcere em que se tornara Portugal, ao longo de tantos anos de regime autoritário. Com certeza que não merece o mesmo aplauso de todos os que lêem estas linhas essa data, mas o simples facto de podermos ser diferentes e escrever o que pensamos só acrescenta mais um argumento à defesa do movimento dos capitães de Abril.
Quando os factos se deram, era eu ainda um estudante muito jovem, mas logo me apercebi do que estava em causa. Hoje recordo, ainda emocionado, a euforia e a ansiedade que então se viveram. Ouvíamos a Rádio com uma devoção quase religiosa, e bebíamos as palavras dos comunicados com a sofreguidão de querer saber mais e mais. Mas, mais do que todos os medos e desconfianças, havia em cada olhar a esperança de que o futuro estava ali pronto a ser emendado e corrigido num sentido mais aberto e feliz. »
(Excerto de artigo publicado em 1999, em Ecos da Senhora de Porto d'Ave)
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