quinta-feira, dezembro 29, 2005

O Dono do Tempo



Deitado à sombra da olímpica eternidade
Entediado com o rodar
Inquebrável das horas
E porque em baixo
vos excedeis
na corrida contra o Tempo,
Eu, Saturno, ofereço-vos
Uma nova ordem de dias.

Esquecido da velhice eterna
que me cobre os membros
Renasço e faço-me moço
Ao ritmo das estações,
Enquanto vós, na celebração
fugaz como a espuma do vinho
A dissipar-se nas taças,
Aguardais o amanhã
Colorido e breve.

Para vós essa ilusão festiva
Essa ânsia de gozar
A furtiva felicidade
esse travo amargo de sentir o correr
dos dias.

Manuel Guimarães (2005)

quarta-feira, dezembro 28, 2005

Foi há um ano


Depois duma tentativa fracassada de criar um blog no Sapo, acabei por vir ter ao Blogspot, inspirado em alguns blogs de que ouvira falar, muito aligeiradamente. E foi mesmo há um ano que este olhar o mundo «a par e passo» iniciou.
Assim, a reflexão, à gisa de desabafo, a crónica, a crítica, o poema (pela pena tímida do meu outro eu «Manuel Guimarães»), ou então o mergulho na memória da longínqua infância tornam-se texto, neste fundo azul, de tão desinteressado e calmo.
Por aqui foram passando alguns cibernautas, uns quantos tornaram-se frequentadores mais ou menos assíduos e eu sempre na esperança de os ver por cá, lá vou deixando mais um «post».
Entretanto, daqui, fui construindo uma plataforma para viajar para outros blogs amigos, que com a regularidade possível visito e leio.
Quando menos esperava comecei a aceder ao mundo e de todas as partilhas do mundo chegaram sinais de recepção. Entendi, então, que somos cada vez mais concidadãos duma pátria tornada mais próxima e pequena com estas novas ferramentas.
Por tudo que frui desta experiência, creio que vale a pena continuar. Sobretudo, porque vale a pena seguir o curso da vida, vivendo-a e sentindo-a «a par e passo».

sábado, dezembro 24, 2005

Boas Festas


A todos os amigos e a todos quantos cá venham desejo Boas Festas, cheias de saúde, paz e felicidade.
Deixo um abraço a todos vós.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

O hipnotizador

De cara vermelha e enfiado na sua longa batina negra o Padre Sousa reuniu cinco rapazes e levou-nos para a sala anexa ao salão de estudo.
Colocou-os encostados à parede dum pálido amarelo. Depois, puxou dum relógio de bolso com as correntes, dum tom de prata, e fê-lo balancear diante dos olhos de um dos moços.
Os outros, em silêncio, com os olhos grandes de espanto e expectantes acompanhavam o pendular compassado do relógio.
Então, com o olhar fixo e penetrante, o padre olhou no fundo dos olhos do pequeno. E disse autoritário e solene:
- Quando contar até três, vais dormir profundamente!
-Um, dois, três!... Dorme! – disse com autoridade.
E o Jorge adormeceu, de pé.
O padre colocou-lhe a mão na nuca, amparou-o e foi-lhe dizendo baixinho:
- Deixa-te cair, estás em casa, aqui é a tua cama…
- E o Jorge foi-se deixando tomar duma imensa sonolência e começou a cair, como se perdesse a consciência e se deixasse adormecer profundamente. Ficou estendido no soalho de pinho, com a respiração pausada de quem dorme um sono profundo.
O padre continuava a questioná-lo se estava confortável. E ele dava um aceno leve. E começava a roncar. O prodigioso clérigo, então, fervia de sucesso.
- Vêem, como ele dorme?! – dizia. - E basta dar dois estalinhos com os dedos e logo acorda! – o seu rosto avermelhava de vaidade.
No pensamento de Nel, no entanto, persistia uma dúvida. Se o padre tivesse de sair e o Jorge não voltasse a acordar? Apoquentava-o o medo de o padre os mandar dizer alguma coisa que não se pudesse saber, debaixo do torpor da hipnose…Ou pior, se ele se esquecesse dos gestos e das palavras mágicas e um deles ficasse para sempre no reino do sono.
Mas nada disso aconteceu. O padre Sousa, deu os estalidos com os dedos e o Jorge acordou, esfregou os olhos e disse apatetado:
- Que foi? onde estou?
Dias depois, porém, a sessão foi diferente. Desta feita a vítima foi o Freitas.
- Acorda! - disse o padre, depois de dar dois estalidos com os dedos. Mas o Freitas não acordava e continuava num roncar perfeito, mesmo de pé.
O Padre tentou mais uma e outra vez. Mas ele continuava naquele sono estranho, como as aves no poleiro. Então o padre, aflito, afastou-se e puxou dum livrinho e releu as fórmulas mágicas. E voltou para junto do estudante, mas agora em vez dos estalidos, foi mesmo um par de estalos que cantaram pelo longo corredor. No salão de estudo todos ouviram o grito do Freitas, que saiu a correr, desaustinado, da sala de arrumos que servia de laboratório ao aprendiz de hipnotizador.
E em todo esse dia na cara bolachinha do Freitas se notaram as marcas dos dedos do severo hipnotizador. A simulação do sono saiu pesada ao Freitas, mas o padre não apanhou mais nenhuma vítima para as suas sessões.
Os rapazes, daí em diante, esgueiravam-se da sua presença e só o toleravam a uma prudente distância, não fosse o seu instinto hipnotizador vir escolher outra vítima.
Manuel Guimarães, Odisseia da Memória(2005)

domingo, dezembro 18, 2005

Os meninos que nós fomos


Olho para a fotografia e não deixo de pensar nos tenros anos da minha infância. Como tão pouco nos fazia felizes! Com um sorriso, uma réstia de imaginação e não havia brincadeira mais gostosa!

Pelo acordar da memória, fico grato ao Museu Etnográfico de Vilarinho das Furnas: o memorial que eterniza um povo que provou aos governantes paternalistas do Estado Novo que estava preparado e sabia usar da democracia.

A Formosura desta fresca serra



Numa breve mas gostosa passagem pelo Gerês, nesta amena tarde de domingo, evoquei Camões, que tinha olhos, alma e arte para amar a natureza.


A fermosura desta fresca serra,
e a sombra dos verdes castanheiros,
o manso caminhar destes ribeiros,
donde toda a tristeza se desterra;

o rouco som do mar, a estranha terra,
o esconder do sol pelos outeiros,
o recolher dos gados derradeiros,
das nuvens pelo ar a branda guerra;

enfim, tudo o que a rara natureza
com tanta variedade nos ofrece,
me está (se não te vejo) magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
sem ti, perpetuamente estou passando
nas mores alegrias, mor tristeza.
Luís de Camões, Lírica.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

O homem disse que ia abrir o livro

Chegaram todos,
Por trás da mesa apinhada de microfones
O homem sentou-se na cadeira e disse:
- Vou abrir o livro.

Depois fixou o olhar na câmara,
Levou a mão aos óculos,
Compô-los melhor
E começou a olhar para um papel branco
que tremia leve
na mão papuda.

-Vou abrir o livro!
repetiu e voltou a ler em silêncio o imenso
papiro branco
salpicado de sinais
e laivos de saliva.

E do outro lado da mesa,
Faiscante irrompia o cliquar das câmaras,
Dos telemóveis.
E quanto mais a onda mediática
Crescia mais o olhar fundo do homem se perdia
Na imensa brancura da folha
Branca.

Então, desfiou um interminável solilóquio
De caóticas sequências verbais
Que só pareciam coerentes
Porque seguiam a cadeia fónica dum discurso
blablablablablBLABLABLA!blablabah!!

De vez enquanto parava
Na esperança de ter arrancado algum aplauso.
Depois voltava:
- hoje vou abrir o livro.
E repetia um a um os gestos
Numa cadência cíclica.

Por fim,
O discurso fez-se noite
Obscura de razões
perdidas num silogismo qualquer.
E o livro aberto
Não tinha mais do que o acento esdrúxulo
Da catástrofe
Do homem que prometia abrir o livro.
M. Guimarães (2005)

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Novo espaço na blogosfera

Iniciou a sua actividade o http://registos-espl.blogspot.com/. Este espaço destina-se a divulgar o que se vai fazendo na Escola Secundária da Póvoa de Lanhoso. É um espaço cheio de novidades, com fotos, com notícias, com temas de discussão. Se és, ou foste estudante ou docente da ESPL passa por lá, comenta e divulga-o juntos dos teus colegas. Eu também vou estando por lá.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Retalhos do nosso Minho


E ao dobrar duma curva ei-lo altivo, elegante e airoso o vetusto mosteiro de Rendufe, em Amares.
Só é pena que o edifício habitado pelos frades ainda tarde a ver a recuperação necessária, antes que o tempo deite tudo a perder.

quarta-feira, novembro 30, 2005

Porque hoje é dia da Restauração




Vou confidenciar-vos. Como gostava de ter estado entre os conjurados, e trazê-los para os dias de hoje. Não era para acicatar os instintos gregários e nacionalistas, porque para esse peditório já muita gente contribuiu.
Gostava era de tomar de assalto qualquer varanda deste reino de opereta e, cheio de coragem, «defenestrar» alguns Miguéis Vasconcelos que por aí haja.
Começaria por um conjunto de iluminados da nossa Economia, aqueles que com os seus «pertinazes» comentários conduziram este reino à pasmaceira em que se encontra; uns quantos com muitas responsabilidades governativas; outros mais com ideias luminosas que só deram em barraca. Mais uns quantos tecnocratas que em 30 anos de actividade criaram um «monstro» voraz, uma máquina do Estado estúpida, ineficaz e gastadora.
Não deixaria a rir-se da miséria aqueles que se serviram do voto popular para chamarem a isto a sua coutada, que distribuíram pelos «clientes» os favores, os tachos...
E tantos Vasconcelos por aí, na Indústria, na Banca, no Comércio, no sector da energia. Todos esses que entregaram de bandeja o que restava da nossa autonomia económica aqui aos vizinhos do lado. Esses defenestrá-los não chegava, era preciso pôr-lhes um carimbo na testa - «VENDIDO».
E para não me acusarem da prática da eutanásia política, deixarei por conta dos eleitores esse golpe final, lá para Janeiro. Porque há actores que se esqueceram que o seu papel chegou ao fim.

Há 70 anos


Desço por dentro de mim e a pouco e pouco perfilam-se sombras esbatidas. Sombras de outros eus que não eu, visto-as de carne, de emoções plurais e ponho-lhes máscaras em forma de poema.
Depois, com uma energia dividida, agarro-me a uma vida fátua e quimérica, que se queima numa dor indefinida de estar existindo.
Depois convoco todos os eus. Trago-te Caeiro e espalho-te o olhar nos verdes arvoredos e no azul límpido do céu, enquanto a amargura do pensar te ensombra esse rosto quase alegre.
Acompanho-te, Reis, até junto do rio. E meditas aí no correr irrepetível dos dias e na linha inexorável do Fado, enquanto refreias o desejo e a ambição de viver.
A ti Álvaro, perdoou-te a tentação do ópio e condescendo na tua agressiva petulância futurista, porque sei que no fundo de ti vives o drama de não viveres plenamente, seres apenas o esboço dum projecto, que se esgota numa velha angústia.
E sinto, ainda, o fervor e o sangue dos heróis que fizeram uma pátria universal e lusa, sob o signo duma Mensagem oráculo que se há-de cumprir.
Olho para trás e da revolta inventiva e provocatória da juventude, derramada nas páginas do Orpheu, já nada resta, apenas traços gráficos que são o rasto que deixei nesta ilusão de existir.

segunda-feira, novembro 28, 2005

Da nossa necessidade de símbolos


O tema em destaque na actualidade pequena da nossa praça política é que o nosso governo também descobriu o «seu véu islámico». Isto leva-nos à antiga discussão da necessidade de símbolos. Mas como sei que há quem queira esgrimir nesta guerra e não eu, lembrei-me deste poema do nosso Álvaro de Campos:

Psiquetipia (Ou Psicitipia)

Símbolos. Tudo símbolos
Se calhar, tudo é símbolos...
Serás tu um símbolo também?
Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas
Postas, com boas maneiras inglesas, sobre a toalha da mesa.
Pessoas independentes de ti...
Olho-as: também serão símbolos?
Então todo o mundo é símbolo e magia?
Se calhar é...
E por que não há de ser?

Símbolos...
Estou cansado de pensar...
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham.
Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando...

Meu Deus! e não sabes...
Eu pensava nos símbolos...
Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa...
"It was very strange, wasn’t it?"
"Awfully strange. And how did it end?"
"Well, it didn't end. It never does, you know."
Sim, you know... Eu sei...
Sim eu sei...
É o mal dos símbolos, you know.
Yes, I know.
Conversa perfeitamente natural... Mas os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas?
Meu Deus! Os símbolos... Os símbolos...
Alvaro de Campos

sexta-feira, novembro 18, 2005

SONATA CON DOLORES

O melhor mesmo é recorrer às palavras deste poeta maior da modernidade.



Cada vez resurrecto
entrando en agonía y alegría,
muriendo de una vez
y no muriendo,
así es, es así y es otra vez así.

El golpe que te dieron
lo repartiste alrededor de tu alma,
lo dejaste caer de ropa en ropa
manchando los vestuarios
con huellas digitales
de los dolores que te destinaron
y que a ti sólo te pertenecían.

Ay, mientras tú caías
en la grieta terrible,
la boca que buscabas
para vivir y compartir tus besos
allí cayó contigo, con tu sombra
en la abertura destinada a ti.

Porque, por qué, por qué te destinaste
corona y compañía en el suplicio,
por qué se atribuyó la flor azul,
la participación de tu quebranto?

Y un día de dolores como espadas
se repartió desde tu propia herida?
Sí, sobrevives. Sí, sobrevivimos
en lo imborrable, haciendo
de muchas vidas una cicatriz,
de tanta hoguera una ceniza amarga,
y de tantas campanas
un latido, un sonido bajo el mar.
Pablo Neruda

GREVE

Há omissões que não têm desculpa.
Hoje decorreu mais uma greve de professores.
E sinto-me como Álvaro de Campos depois de se deixar atirar para dentro duma fornalha.
Estou duplamente derrotado. Por ter-me escondido atrás de desculpas imensas para a não fazer, por não ter respeitado o esforço dos colegas de trabalho, que apesar de tudo não desmobilizaram. Por eles sinto-me envergonhado.
Hoje aceitei que estava vencido antes da refrega. Permiti que, em vez de professor com a dignidade da sua missão, me «funcionarizassem», que me gravassem na mente a minha condição de escravo.
Acedi em aceitar a humilhação de ter daqui a alguns anos de me arrastar sem proveito de ninguém pelas salas de aula, quando nem as forças nem a imaginação me deixarem fazer o que é necessário.
Por tudo isto, aqui deixo este sentido pedido de desculpas.

sexta-feira, novembro 11, 2005

A propósito dos acontecimentos em França

Ando há uns dias para me pronunciar sobre os acontecimentos que se têm vivido em França.
Por um lado vejo aquele amontoado de sucata queimada, os sinais de uma orgia de fogo, por outro não deixo de pensar no que está ali. E penso «ali», parece distante...Mas, nas nossas Zonas J de Lisboa e arredores, nos nossos bairros suburbanos do Porto, de Braga, de Guimarães e até de pequenas vilas com seus bairros sociais. Também aqui a iminência de qualquer coisa de violento se esboça, cresce, quase se impõe no seu cruel acontecer.
Depois penso, ainda, onde é que falhamos? Não foi criado um sistema «dito» democrático, integrador, que deminuisse as diferenças, as injustiças?
Agora, sobre os agregados familiares de parcos recursos a ameaça do desemprego, ou o emprego desumanizador deixarão sequelas profundas neste tecido social tão diferenciado, apesar dos esforços da República.
O que me intriga em situações de vandalismo, de agitação social é não saber qual o elo de ligação entre os jovens e suas famílias. Que configuração têm as famílias nas cidades que cresceram à sombra dos novos tempos (dos anos sessenta até hoje)?
A quem prestam contas os rapazes e raparigas quando saem de casa? Ou, simplesmente, já não prestam contas?
Uma dificuldade se me impõe e que julgo de muito difícil ultrapassagem: se as famílias carenciadas e que se habituaram à prestação subsidiária estatal, terão conhecimento de que se esse sistema falir, voltarão ao tempo do «quem tem unhas toca viola»? e de que a solidariedade será a lei da selva?
Reflectirão alguns, pelo menos uns segundos, sobre as consequências de falir um Estado Social?
O Estado Social gerou-se graças ao contributo da filantropia humanitarista, se este falhar teremos de voltar a que ponto?
Não será tempo de, em vez de exigir direitos, começarem todos a pensar igualmente nos deveres?
Se esta é a casa comum de todos os homens, já é bem tempo de se pensarem soluções adequadas que não atenuem o problema, mas que contribuem para a sua solução.

A importância de estar bem informado

A minha amiga, colega e ex-aluna Anabela mandou-me esta preciosidade: um link que permite o acesso a jornais de todo o mundo. É a aldeia global, podem crer!
Se quiserem experimentartentem lá: http://www.newseum.org/todaysfrontpages/flash/ .

terça-feira, novembro 08, 2005

Álvaro de Campos

Ler a poesia de Álvaro de Campos ainda pode ser um acto de higiene mental interessante. Veja-se o poema seguinte e o ridículo em que se colocam todos os presunçosos.


Poema em Linha Recta


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos!

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos

terça-feira, novembro 01, 2005

Terramoto de 1755


Assim fala o Público de ontem no Terramoto de 1755:

«Nove minutos que abalaram o mundo

É dia 1 de Todos os Santos e a manhã de sábado, 1 de Novembro de 1755, surgiu límpida e amena, ainda a lembrar um longo Verão sem pinga de chuva. "Os ares da atmosfera estavão mui subtis e puros", registou um lisboeta. "Fazia um tempo sereno e o céu não tinha uma nuvem", descreveu um comerciante inglês. A temperatura ronda os 18 graus. É dia de missas e o povo de Lisboa - muita da nobreza ainda goza o bom tempo fora da cidade - enche as igrejas. D. José passou a noite na Real Casa de Campo de Belém e conta ir aos Jerónimos.» Francisco Neves, Público, segunda-feira, 31 de Outubro de 2005.

O 1.º de Novembro na Galiza



«Na tradiçom galega com toda segurança o Magusto provém do Samhain celta (José Manuel Barbosa).

Para os celtas, o primeiro de Novembro marcava a data do fim do ano, a passagem do verao ao inverno, da época na que a vida se realizava no exterior à época na que a vida se fazia no interior da morada ao pe do lume da lareira. Esse dia era chamado polos gauleses Samónios e polos irlandeses Samain ou Samhain e era umha festa à qual acodiam todas as pessoas dos povoados celebrando-se umha série de rituais relacionados com a justiça, o direito e a política à vez que dum ponto de vista religioso acreditava-se que a porta do Sidh, do além, do lugar onde moravam os mortos, era aberta para que aquelas pessoas que tinham deixado este mundo pudessem comunicar mais outra vez com aquelas outras que ainda nom o tinham deixado.»
in AGAL - Portal Galego da Língua , n.º 36, 2005.

segunda-feira, outubro 31, 2005

5000

É apenas um número, mas tem um significado para mim: esta é uma maneira de interagir com o mundo. Através desta página vieram pessoas de múltiplos espaços, alguns conhecidos e amigos, muitos desconhecidos, alguns destes se tornaram amigos virtuais. O que mais importou é que por palavras, simples e desinteressadas tentei estar com o mundo, interagir com ele, acompanhá-lo nas suas tristezas, saudar os caminhos novos que se abrem.
Porque tudo isto me parece válido, continuarei, mesmo sabendo que há momentos em que o tempo e a disposição não ajudam.
Por isso saúdo todos aqueles que me visitaram e me visitarão. É para todos vós que mantenho este espaço.

A grande nau

Minha vida é uma barca imensa

Saiu do porto
Em dia de névoa
Bem cedo

E foram entrando
Um a um todos os companheiros
Desta errante viagem

Umas vezes o sol brilha
E límpido o horizonte se revela
Matizado da profusão de cores
E todas as palmeiras se vergam obedientes
E todas as ostras se abrem em pérola
E todos os aromas
São ritmos vivos e quentes

Mas outras
Debaixo duma cerração densa e húmida
Tocamos o céu a escorrer
De tinta em cinza
Que nos aperta cada vez mais
Contra o casco duro desta frágil embarcação.

E mais pesado ainda
Quando intrusos irrompem
No espaço seguro do leito

E mais desolada continua
Vogando
Quando a abandonam
Aqueles que a ajudam
na tormenta.
M. Guimarães (2005)

quarta-feira, outubro 12, 2005

Verdes anos

- Amanhã esteja pronta às nove.
- Sim, senhor abade.
Depois, voltou para casa e pediu à filha que lesse mais uma vez a lista de todas as coisas que pediam.
-Já temos tudo. Só não sei o que é isso do cionário. Tu não sabes o que é, Mila?
E ela, de olhos grandes, olhou perplexa e pensou o que seria esse cionário.
O dia seguinte chegou. A mala pequena de folha vermelha de pequenas estilizações geométricas estava cheia. E o Nel, vestido com o fatinho escuro do exame da quarta e os sapatos esfolados da brincadeira, ficou à espera da ordem de partida.
Depois subiram a calçada, a mãe, à frente com a mala e um saco grande de pano com as roupas para a cama. O padre Bento já se encontrava junto ao seu Ford Cortina. Acomodados, desceram calçada abaixo, por baixo das ramadas de Carreira, de folhas vermelhas e salpicadas de cal. O carro rolou veloz pela estrada de asfalto e, diante dos olhos do pequeno, acomodado no banco de trás, iam passando pessoas, casas, árvores que a sua memória visual estranhava.
- Vamos por Serafão, tenho de ir lá buscar uns rapazes dum compadre meu. Depois, passamos por Fafe e antes do meio-dia já lá estaremos.
Em Serafão entraram os dois moços. Um mais velhito e outro da idade de Nel. Olharam uns para os outros e foi difícil encontrarem um tema que os aproximasse.
De dentro da taberna, quando o padre Bento estava para arrancar, veio um homem gorducho e rosado que recomendou:
- Esses malandros que não me gastem o dinheiro à toa! Quero fazer deles uns homens!
- Sossega, Monteiro, que os teus moços hão-de sair de lá uns homens, se Deus não os quiser para Ele.
E o carro arrancou ligeiro e seguiu galgando a sinuosa fita negra do asfalto. Pouco depois, já o casario de Fafe se ajuntava no alto sobranceiro ao vale do rio Vizela. Diante da livraria, na praça principal, parou. Venha daí senhora Maria, vamos lá ver se encontramos o tal Dicionário.
Afinal, o cionário era um livro! Um volumoso e pesado livro! O mistério desfez-se, depois, quando se abriu com aquelas letras miúdas alinhadas pela página abaixo e encimadas duma letra maiúscula que o malabarista editor requintou. Vinha ainda com um cheiro forte de tinta da impressão. Tempos mais tarde, com olhos devassos, à socapa, catariam os rapazes nas imensas páginas aquelas palavras interditas e sujas da brejeirice.
Por fim, assomaram à entrada duma grande casa que duas enormes tílias ensombravam. O carro contornou a estátua branca rodeada dum pequeno lago azul, e plantada no meio do largo fronteiro à grande casa amarela, e foi parar diante duma porta enorme com vidros coloridos de igreja.
Um padre de batina negra veio recebê-los e entraram.
Pouco depois, o menino estava com o rosto colado à vidraça, no segundo andar, a ver o carro do padre que regressava a casa com a sua mãe. Enquanto duas gordas lágrimas deslizavam nas faces um soluço forte subia-lhe pela garganta.
À noite, não ouviria mais a voz doce da mãe que o mandava dormir no aconchego da cama de pinho.
Manuel Guimarães, Odisseia da Memória(2005).

quinta-feira, outubro 06, 2005

Ultimatum Futurista


Como nos fazem falta, hoje, a irreverência e a rebeldia da geração do Orpheu!


ÀS GERAÇÕES PORTUGUESAS DO SÉC. XXI


Acabemos com este maelstrom de chá morno!
Mandem descascar batatas simbólicas a quem disser que não há tempo para a criação!
Transformem em bonecos de palha todos os pessimistas e desiludidos!
Despejem caixotes de lixo à porta dos que sofrem da impotência de criar!
Rejeitem o sentimento de insuficiência da nossa época!
Cultivem o amor do perigo, o hábito da energia e da ousadia!
Virem contra a parede todos os alcoviteiros e invejosos do dinamismo!
Declarem guerra aos rotineiros e aos cultores do hipnotismo!
Livrem-se da choldra provinciana e da safardanagem intelectual!
Defendam a fé da profissão contra atmosferas de tédio ou qualquer resignação!
Façam com que educar não signifique burocratizar!
Sujeitem a operação cirúrgica todos os reumatismos espirituais!
Mandem para a sucata todas as ideias e opiniões fixas!
Mostrem que a geração portuguesa do século XXI dispõe de toda a força criadora e construtiva!Atirem-se independentes prá sublime brutalidade da vida!
Dispensem todas as teorias passadistas!
Criem o espírito de aventura e matem todos os sentimentos passivos!
Desencadeiem uma guerra sem tréguas contra todos os "botas de elástico"!
Coloquem as vossas vidas sob a influência de astros divertidos!
Desafiem e desrespeitem todos os astros sérios deste mundo!
Incendeiem os vossos cérebros com um projecto futurista!
Criem a vossa experiência e sereis os maiores!


Morram todos os derrotismos! Morram! PIM!

J o s é d e A l m a d a N e g r e i r o s
P O E T A F U T U R I S T A E T U D O

segunda-feira, outubro 03, 2005

Eclipse 2

Mais um trecho deste fantástico fenómeno astronómico. Pena a máquina não ter permitido algo mais definido.

Eclipse


E foi assim, a lua passeou-se diante do sol e este turbou-se ligeiramente, enquanto um vento frio fazia balouçar as ramagens das árvores.

terça-feira, setembro 27, 2005

Estou contigo



Respiro de alívio. A escolha é possível. Há lógicas que parecem triturar os homens. No entanto há homens que fazem emperrar as engrenagens que ameaçam fazer vergar os homens. Por tudo isso, saúdo a coragem do poeta. E que a voz não lhe falte nos combates urgentes para salvar o que resta desta triste república.

Manuel Alegre, estou contigo.

quarta-feira, setembro 21, 2005

Vindima

www.cm-lamego.pt/ fototeca


Hoje desci os degraus
da escada interminável
e rasgada no solo xistoso

De lado seguras por muros oblíquos
de pedras e lousas
as videiras agarradas à nesga
de húmus generoso
com as parras avermelhadas do sol
ostentam vaidosas os rácimos negros

Ao longe um rancho de povo
vergado
tosquia as cepas

E aquelas veredas
e aqueles socalcos
fartos de mosto
e de suor
de gestos repetidos e duros
fazem para os homens
um néctar divino.
M. Guimarães (2005)

Aula Aberta

Chegou a hora de dar um sentido mais prático e útil a este «prazer» e «vício» de manter um blog. Assim, começa a construir-se o Aula Aberta, blog de apoio a alunos e professores de Língua Portuguesa da Escola Secundária da Póvoa de Lanhoso. É natural que esta iniciativa vá desviar algum do nosso tempo para essa vertente mais pragmática, por isso a ausência de actualizações neste espaço(o aparipasso) terão a compreensão de todos os que aqui vierem. Garanto-lhes: é por uma boa causa!

domingo, setembro 11, 2005

Palavra necessária

Não sei por onde começar.

Há tanto a dizer
Mas sempre que começo
Pareço tropeçar na frase espúria
Na palavra imprópria
Na ideia cruzada e indecisa.


Por vezes
O silêncio vale mil palavras
Outras
O silêncio é a face
Inaudível da mordaça.
Por isso não resisto a tomar a palavra
Com vontade de gritar.
Mas gritar o quê, para quê
Por quê?

Mas contra a barreira de silêncios
Covardes
A palavra faz-se espada
E rasgará
os mantos negros dessa velha e gasta paz.

Irá como uma centelha incendiar
O negro céu da mente
Que verterá dilacerada
Um sangue vivo
E novo.

Porque é preciso
Limpar o trigo
para a alvura do pão.

M. Guimarães (2005)

segunda-feira, setembro 05, 2005

Esta imagem vale mil palavras

Copiado do Cidadão!Com o início do ano lectivo já aí, por que não uma reflexão sobre o estado da educação em Portugal? E ocorrem-me agora as pressões que sobre os professores se fazem quando se fala de sucesso escolar. As estatísticas fazem mais do que o estudo. Se os exames obrigam a estudar e chumbam os meninos: fácil! Acabem-se com os exames! Ou ainda melhor, baixe-se o nível de exigência dos exames! Mas que ninguém se lastime se o panorama for este: alunos que depois de percorrerem toda escolaridade até ao 12.ºano não sejam capazes de organizar um texto numa linguagem minimamente correcta e de interpretar com algum rigor a mensagem dum texto de dificuldade média. Muito do esforço dos professores dispersa-se em actividades burocráticas kafkianas em vez de se dirigido para aquilo que do professor se espera: a preparação dos seus alunos. Os alunos, por sua vez, em vez de se prepararem com um estudo aturado e sistemático para uma assimilação correcta e inteligente do saber e adquirirem as competências necessárias à sua progressão, procuram obter resultados imediatos, lançando mão de uma panóplia de mezinhas que enganam as estatísticas mas não alteram as evidências. Pode ser que algum dia, do lado do poder, das escolas (docentes e não docentes), dos alunos e seus encarregados de educação se faça o que há muito se devia fazer: educação. Nos últimos tempos, o treino, o amestramento, no fundo a fraude generalizada têm levado a palma. Mas é preciso acreditar! Temos de acreditar!

sábado, setembro 03, 2005

A propósito do Katrina

Dei hoje uma espreitadela ao blog Abrupto e não deixei de me aperceber de que a isenção de que se arbora o seu autor tem limites. Há algo que nunca põe em causa: a superioridade dos USA em relação a todos os outros povos. E não faltam textos de leitores assíduos do mesmo que aproveitam para espiçarem a Europa dos males que esta exibe face ao paraíso americano.
Opiniões são opiniões, mas factos são factos: foi precisamente num dos estado dos USA que permitiu uma das mais escandalosas chapeladas em actos eleitorais, foi precisamente aí que havia de mostrar-se perante a opinião pública mundial a sobredita «superioridade americana».
No momento, porém, o que importa é dedicar às vítimas da imponderável natureza e da falta de estratégia dos políticos a minha solidariedade.

quinta-feira, setembro 01, 2005

Cromos

A época futebolística começou, mas há já factos dignos de registo (Benfica, Guimarães). Talvez fosse oportuno às respectivas direcções pesquisarem um pouco nos velhinhos cromos alguns craques já retirados que poderão dar uma perninha como armas secretas. Isto se quiserem imitar os treinadores do PS que arranjaram um craque da pós-carreira para tentarem ganhar o campeonato das presidenciais. (podem rir!).
Já agora para se recordaram de alguns dos craques da bola, porque não dar uma espreitadela ao blog http://cromodoscromos.blogspot.com/? Ajuda a reavivar a memória.

quarta-feira, agosto 31, 2005

Anúncio

- Caros companheiros
camaradas da longa estrada
venho aqui
com toda a veemência dizer-vos
que a pátria está em perigo

que de todos os cantos deste
paraíso abandonado
espreitam ameaças
há a iminência da república
ser destruída
e vilipendiada.

Por isso
apresento-me e sacrifico-me por vós
depois de ter pairado sobre mim
o véu da morte.

E o arrazoado prosseguia
em tom ronceiro e gasto.
Então, uma criança puxou
o vestido da mãe
e protestou:
- mãe, a bolacha tem mofo,
já não presta.

- Come, filho, é o que há.
E na mão mimosa do menino
a velha bolacha se esboroou e ficou
em nada!
M.Guimarães (2005)


PS. Porque não nos conformamos com o absentismo de alguns e a insanidade de muitos.

terça-feira, agosto 30, 2005

Final de Verão

O que dizer
quando se regressa aos espaços
de sempre
viciados de nós
pisados da nossa presença

e sabemos que da ausência
nada de novo brotou do solo exausto
que na penumbra de árvores transidas
de folhas enroladas
a aragem sopra ainda asperamente seca
e tudo se abate numa calmaria entediante.

Enquanto nas entrelinhas dos bizarros boletins
a sede se agiganta
e os pássaros doentes estilhaçam
os céus com gritos febris como pedras

Eu recolhido na sombra de gestos defensivos
aguardo que a amenidade doce da brisa
suavize o ar
tempere o sol ardente
e adoce os figos
hirtos e verdes
e os cachos enloureçam
de doce mosto.
Manuel Guimarães (2005)

quarta-feira, agosto 24, 2005

Um pouco de mar


A simplicidade do quadro. De manhã, o areal livre, a água fresca, a paisagem desimpedida. Para gozar o Algarve é preciso acordar cedo e não temer os sinais do tempo. Qualquer ameaça de tempestade é apenas e tão só uma ameaça.
Mas era precisamente quando os elementos se conjugavam que tudo aquilo fazia mais sentido e me relaxava por completo, lá isso era!

domingo, agosto 21, 2005

Dissolvência

Era um mundo compacto
Cheio
O verde revestia o castanho do húmus
As ervas lanceoladas apontavam o ar limpo
Flores lilases
Brancas, amarelas, azuis
Ponteavam o verde.
O musgo aveludado adoçava a aspereza dos granitos.
Hercúleas as formigas arrastavam
Toneladas de sementes
Por córregos intermináveis.

O azul do céu e uma luz limpa e exacta
Iluminava
Nos tons perfeitos as cores da vida
Cortada apenas pelo som estridente
Dum pássaro em voo rasgado.


Mas eis que um turbilhão de chamas
Avança numa surdina medonha
Galopando veredas fora.
Cerca as árvores, envolve-as, devora-as insaciável
E deixa-as como espectros sombrios e tristes.

Por fim,
Fica o cheiro abafado do fumo
As cores mortais
Da paisagem toldada de névoa
Sufocante.
E dentro de mim a dor de sentir
O corpo da terra destroçado
Num mar de chamas.

Manuel Guimarães (2005)

domingo, agosto 14, 2005

O papagaio que queria ser gaivota



Preso ao cadeado e empoleirado no cepo, o velho papagaio mirava ao fundo, para além da avenida, o areal da praia, e o bater incansável das ondas.
- Uah!.. uah! uahhh…- gritava de quando em vez o papagaio azul e amarelo. De vez em quando uma risada trocista:
- Ahh, ahh, ahh...! – o som gutural tinha a conotação de desprezo e raiva.
Mas intrigante era o primeiro som. Donde lhe veio a inspiração? Que animal tão inapto era aquele que em vez das habilidades vocais conformes à sua espécie, apenas aturdia os ares com sons ininteligíveis e pouco consentâneos com a sua ancestral amestração?
Numa tarde, quando a ameaça de mau tempo empurrou para terra as voláteis gaivotas, reparei na coincidência. Os sons angustiados do papagaio eram muito semelhantes aos das gaivotas.
Será que o velho papagaio queria ser gaivota? Abandonar de vez o seu poleiro, libertar-se das correntes que lhe tolhem o voo e prescindir da ração de fruta e da água quente do sol no copo de alumínio?
E se por momentos o papagaio se libertasse e irrompesse no ar às voltas e se elevasse sobre a frescura das águas e mirasse sob o seu azul translúcido as penumbras prateadas dos cardumes?
E se arrastado pela brisa sobrevoasse a multidão estirada ao sol e se deslumbrasse com a paleta interminável das cores dos guarda-sóis?
E se um arrojo de liberdade o levasse para além do horizonte, muito para além daquela varanda ferozmente branca, muito longe da mão do dono que lhe cochichava palavrões e lhe dava fruta e água, então, nesse espaço imenso, sem anilhas, sem cadeado, dono dos mais belos poleiros em árvores floridas pronunciaria os sons ajustados à sua ânsia de ser novamente um pássaro livre.
Mas os dias do papagaio eram entregues àquele cenário monótono, ao rodar das horas, ao revezar-se dos banhistas e das marés, à imensa inveja do voo livre e imprevisível das gaivotas. Por isso, nada mais lhe resta senão imitar o som liberto das aves que dia a dia o desafiam para o grande voo.
Manuel Guimarães, Passar a Sul (2005).

segunda-feira, agosto 08, 2005

La rentrée

Depois de uma boa estirada ao voltante do meu possante saxo, eis-me de novo em casa. Lar doce lar!
E apetecia-me falar de política. Como gostaria de enaltecer algum promissor candidato a PR. Alguma personalidade catalisadora de todas as energias e criasse as sinergias necessárias, personalidade grata que tivesse ideias, carisma, élan, charme (homem, ou mulher - porque nesta fase da evolução do homo portucalensis, as mulheres também são gente!!!). Alguém que nos fizesse esquecer a má economia, os maus políticos, os desastres que todos os dias nos alagam os olhos de água.
Mas, logro dos logros! Dois senadores que já esgotaram todas as suas poções «mágicas» (teriam sido?) apresentam-se agora como os guardiões do templo.
Meus amigos, o templo será roubado! E se não for será distribuído a retalho pela canalha militante que enxameia a nossa vida pública.
Por tudo isso,«mea culpa», votei com Sócrates, mas não me revejo na palhaçada para que caminha a coisa pública. Nem umas merecidas e parcas férias me adoçaram a língua, porque nada pode adoçar a amargura de saber que o círculo de giz em que se fechou a «nossa elite política» abarca um punhado de compadres que vão todos às mesmas festas, e bebem do mesmo «champanhe», importado, como exige a etiqueta.
Por isso, a minha intenção é, a não mudar o cenário, de não contribuir com o meu voto para a beatificação de mortos vivos.
Amen.

sexta-feira, julho 29, 2005

Obrigado

Quero desejar a todos os que me visitaram um excelente verão e férias, se for caso disso.
Não há muitas oportunidades de actualizar este meu espaço, mas vai-se fazendo o que se pode.
Voltarei, um dia destes.
Até breve.

SOL, SAL, SUL

Abro a persiana
o sol brilha envergonhado
lá ao fundo, rente ao mar
nuvens escondem o azul

Gaivotas irritadiças
esganiçam um canto
melhor um rouquejo

E valerá a pena sair
ver a água espumar-se na areia?

Bom
que caiam
grossas cordas de água
o encontro com o mar
é mais forte do que o tempo

E a praia ficou toda inteira para mim
os outros fugiram
uns pinguiços não me assustam.

Em corrida atiro-me às ondas
que rítmicas batem na areia
e o banho de mar
foi um banho lustral
lavou a imensa poeira
que me atravessava a mente.

Depois veio o sol
e aqueceu-me
e estendi-me recebendo-o
como uma carícia doce.
M.Guimarães,2005.

domingo, julho 24, 2005

Sol, mar, sossego


foto da Net.
Agora que o sol seja generoso, a água tépida, a areia limpa e a rua sossegada q.b. São os votos de quem precisa de recarregar baterias.

Vamos a banhos




A velha camioneta de passageiros chegou. E a mãe e os dois meninos já lá estavam a aguardá-la na paragem.
A mãe trouxe a mala grande e a filha mais velha trouxe mais dois sacos em pano com outras coisas necessárias: roupas de cama e outras utilidades.
- Olhe, senhora. Tem que me chegar a bagagem para o tejadilho da camioneta, na mala já não cabe mais nada.
O cobrador correu a escada e subiu para cima da camioneta. Do chão, a mãe, a custo, levantou a mala e passou-a ao cobrador, que a prendeu com uma rede junto doutras bagagens.
- Mãe e as crianças entraram e sentaram-se os três no assento duplo. O cobrador chegou-se e perguntou:
- Então, é prá Póvoa?
- Sim, prá Póvoa. Se esta geringonça aguentar!…
O motorista voltou-se, levantou o boné em cumprimento e entrou na conversa:
- Pode ficar descansada, santinha. Isto ia até à França, se fosse preciso! Tem um motor alemão de origem…
- Ia, ia…Se não se puser pra aí a ferver como uma panela!... É o costume!
- Desta vez não há azar. Não é, ó Freitas?
O Freitas, cobrador, estava a fazer o troco e acenou apenas com a cabeça.
E lá seguiram viagem. Nas curvas mais fechadas a buzina da camioneta alarmava os passageiros e os pobres campónios que se abeirassem da estrada.
Quando Famalicão já estava à vista, naquela longa recta ladeada de milheirais viçosos, o previsto aconteceu. Não é que a camioneta começa a deitar fumo pela tampa do motor, que ficava mesmo à frente e ao lado do motorista?
- Ó Freitas, despacha-te, traz água, que esta coisa está a ferver!
- Se trouxesse a carne já a assava. – Arengou um passageiro, que se divertia com a cena.
- Ó senhor motorista, não nos queime aqui todos! Olhe pelo menos por este dois meninos que eu aqui tenho. O que havia de dizer a meu homem?!
- Sossegue, que isto não é nada. Daqui a pouco ela fica boa outra vez e vai por esta estrada fora como uma bailarina.
Depois de deitarem lá para dentro dois cântaros de água que o cobrador foi apanhar num tanque que ficava mesmo ao lado da estrada, o que se sabe é que a camioneta retomou a marcha e não voltou a deitar fumo pela tampa!
Uma hora depois, a camioneta estava a passar por baixo do velho aqueduto:
- Já se vê o mar! – disse em sobressalto o menino mas velho. - Lá ao fundo.!- e os olhos do menino brilhavam como a toalha prateada da água do mar que à distância se vislumbrava.
- Deixa ver! – pediu o pequenito.
Ele espreitava mas não via nada.
- Fica quietinho que logo já vais ver o mar.
Mar – palavra mágica que soava como um mistério que prestes se iria revelar para aqueles dois petizes habituados à pequenez do rio e das poças dos lavradores,.
Pouco depois chegaram ao fim do percurso, junto ao escritório da empresa.
- Chegamos, tiazinha.
- Eu não sou sua tia. Olha o atrevido!...
- É um modo de falar. Agora é só descer a bagagem e estão entregues.
- Já não era sem tempo – ripostou a mãe.
- Agora, Zé, esperas aqui com o teu irmão que vou ver se arranjo quem me leve a bagagem.
Passados alguns minutos estava de volta e vinha acompanhada dum sujeito meio curvado, que tossia um catarro velho de tabaco, com um boné e um bigode grisalho e queimado do fumo. Depois pegou na bagagem e perguntou:
- Para onde é, minha senhora?
- Para a Rua Latino Coelho.
-Ó, é perto, está com sorte!
O homem ia à frente e a mãe com os dois filhos pela mão seguia-o de perto.
-Mãe, já me doem as pernas... – queixou-se o mais pequeno.
- É já ali. Só falta um bocadinho.
Por fim, chegaram.
A casa tinha uns azulejos com motivos marinhos: homens do mar que puxavam as redes, mulheres de canastra de peixe à cabeça, Um outro poveiro de gorro na cabeça e o braço curvo e a mão a fazer pala sobre os olhos, mirava a lonjura da linha do horizonte.
A porta estava aberta, a mãe falou com a senhoria e acomodou as coisas nos armários, preparou as camas e depois disse aos meninos:
- Vamos lá ver o mar.
Os meninos davam saltinhos de euforia. Depois, seguiram-na.
Atravessaram uma, outra e mais outra rua.
- Nunca mais é! – resmungou o mais novito.
- É já ali. – tranquilizou-o a mãe.
- Já se ouve! – exclamou o mais velho.
Alcançaram, por fim o areal. E as ondas lambiam as areias, com ímpeto.
- Vamos molhar os pés.
E correram indiferentes aos ralhos apreensivos da mãe.
Depois veio uma onda que os molhou e os deixou tontos, quase caíram na água. Se não fosse a mão segura dum banhista adulto e logo ali se teria dado uma desgraça.
O sermão da mãe veio, e passaram a ter mais medo do mar, que não era a poça do Agro…
No dia seguinte, a história foi outra. O banheiro Mouco chegou-se aos rapazes que brincavam na areia:
- É hora do banho! - E um em cada mão, levou-os para a água.
O mais velho fez um tal alarido que se ouviu em toda a praia. E nunca mais ele quis entrar no mar.
O pequeno, esse achou imensa piada ser mergulhado nas pequenas ondas que espumavam.
Enquanto isso, a mãe observava, divertida, o verdadeiro baptismo de mar dos seus filhotes.
E assim decorreu aquele ano de banhos na Póvoa de Varzim, na longínqua década de sessenta. No ano em que se comentou em cochicho que Salazar caíra da cadeira.

Manuel Guimarães , Odisseia da Memória (2005)

segunda-feira, julho 18, 2005

A Cidade Grande


Desceste na estação, atravessaste o átrio por entre rostos macilentos e ríspidos.
E ao fundo dos baixos degraus que desciam da estação, diante de ti, patenteou-se a longa e movimentada avenida.
Era um interminável fluir de táxis, autocarros, veículos de todas as marcas e feitios. E como tu, um formigueiro de passos apressados e firmes dispersava-se nas múltiplas encruzilhadas que dali se abriam.
Atravessaste a passadeira e entraste num snack de aspecto feio e abafado, atolado de clientes famintos. Exalava-se ali uma horrível amálgama de aromas. Chegaste-te com dificuldade ao balcão, pediste uma sanduíche e uma cerveja a um empregado calvo e gordo, de camisa branca, mas que o sujo dum dia de trabalho escurecia levemente. E veio a sanduíche envolta em plástico e a cerveja espumou no copo que ainda sabia a cloro. Instintivamente, embora tivesses tempo, tragaste, voraz, a sanduíche e a cerveja, empurrado pela pressa dos que te rodeavam. Depois, ficaste ali a ver o sôfrego apetite dos outros e a ouvir as estranhas modulações da tua língua, até habituares o ouvido. Pediste ainda um café.
- É uma bica? – disse o empregado.
- Sim, isso mesmo.
Ao saíres, foste abordado por dois sujeitos de aspecto duvidoso que te propunham negócio, um relógio, um revólver, qualquer coisa…
Mas, sem te intimidares, com a lição bem estudada, despachaste-os.
- Como conseguiste?
Bom, isso talvez tenha sido um pouco de sorte…Confessa! …Não reparaste que dois polícias assomavam na esquina, a uns vinte metros?
Entretanto, a tarde esgotava-se, e era possível ver, por detrás dos barracões que fechavam o Tejo, algumas cintilações de fogo dum sol que morria lá longe no oceano.
As luzes dos carros, dos candeeiros, as iluminações intermitentes de alguns anúncios davam uma cor irreal e feérica à cidade. O movimento, as luzes e os ruídos da cidade plasmavam-se numa mistura cinestésica estranha.
E foste seguindo avenida abaixo com o saco seguro pela alça ao ombro. Os teus passos eram largos e firmes. Tinhas apenas alguns minutos para fazeres essa distância.
Quando o esforço já te obrigava a abrandar, chegaste, enfim, ao Terreiro do Paço. Entraste na Estação fluvial e pediste bilhete para o Barreiro.
E foste atrás daquele cabisbaixo rebanho que regressava ao aconchego do lar na outra margem. Subiste a prancha, entraste no bojo da barcaça azul e ficaste junto à janela. E continuavam a entrar os passageiros, quase todos calados, uns de fatos puídos nas repartições públicas, outros com um ar mais informal, sem gravata, em casacas de ganga. Um ou outro casal trocava silêncios afectuosos, outros mais empolgados comentavam as peripécias do escritório ou da loja; outros, discretos, tocavam-se nas mãos e sorriam aguardando a satisfação do desejo, na privacidade daquele t2 que abre para a fábrica fumegante.
Olhaste a cidade que vestia as colinas, agora com colorações mais irreais, de cascata ou de presépio. E as fachadas brancas dos edifícios matizavam-se dos reflexos multicolores de néon.
E o cacilheiro balouçava docemente e o ronronar suave do motor e o borbulhar contido da água junto à ré faziam crescer aquela imensa dormência. E a pouco e pouco a imagem da cidade afundava-se mais nas margens do Tejo. E tu, reclinado, deixavas-te dormitar.
Chegaste, por fim, à outra margem. Lá longe, a neblina e os vapores sulfurosos, que as siderurgias lançavam, davam a este espaço a visão dantesca dum reino medonho.
Para trás ficava a cidade grande, branca e bela, voltada ao Tejo, agora vigiada por uma fria lua imensa e alva.
Manuel Guimarães, Odisseia da Memória (1982).

quinta-feira, julho 14, 2005

O que temia aconteceu


Outro ângulo do desatre.

O que temia acabou por acontecer. Somos de facto um povo estranho, delapidamos o que melhor temos: a nossa paisagem. A troco de quê? Digam-me? Que lucros, que negócios chorudos, que interesses podem sobrepor-se a um ambiente mais saudável?
Só por malvadez, penso eu.
Também nós temos os nossos terroristas. Mas estes são tão covardes que não reivindicam as suas façanhas.
Estão satisfeitos? Quem vos encobre, afinal?

As sequelas da estupidez humana

Há umas semanas atrás

quarta-feira, julho 13, 2005

Confidências duma estranha

Segunda-feira, Novembro de 1981, são sete da manhã.
Entro no comboio com destino a Lisboa. E vou sentar-me junto a uma janela. Como o frio apertava, enfiei-me todo no casacão verde.
Ouviu-se o silvo do homem da estação e a composição, num avanço bamboleado, pôs-se em marcha.
Colado o rosto à janela, via passar uma a uma as velhas casas amarelecidas do sol que avermelhado irrompia por detrás das construções.
Ao atravessarmos a velhinha ponte de ferro, a respiração foi mais pousada. Depois, chegamos à estação de Gaia. E entraram mais passageiros.
Pedindo licença, sentou-se a meu lado uma senhora, ainda de aspecto jovem e do género bonequinha.
Passados alguns minutos, meteu conversa:
- Então vai pra Lisboa?
- Sim, mas depois sigo mais para sul. Vou pra Faro.
Olhando para o meu saco de viagem e o aspecto de jovem quase imberbe, avançou:
- Vai pra tropa?
- Não, pra tropa não. Trabalho lá.
Tão novo e já trabalha?
- Tem de ser. Acabei o curso e tenho de trabalhar.
- Eu gostava de ir trabalhar. Mas não posso. O meu marido não me deixa.
A partir dali foi o desfiar de todo um rosário de amarguras, que uma relação aparentemente difícil ia acrescentando:
-O meu homem, não me dá um passo. Nem posso arranjar um emprego nem ter a minha independência.
- Mas ainda há homens assim!? – reagi.
- Se fosse só isso…
Conta, mulher, os teus sonhos desfeitos, a tua liberdade traída, o sufoco de seres apenas a arrumadinha guardiã do lar, que te acomodaste a uma vida pretensamente fácil. Que trocaste uma vida incerta pela carreira de esposa do promissor empresário. Depois, soltaste todas as tuas mágoas. Do arrefecer do amor, do crescer da repulsa, da tentação da fuga, da ânsia de encontrar alguém que te compreenda e te dê felicidade.
E ali, nela esverdeada carruagem de comboio, senti-me pela primeira vez confidente duma vida que girava em torno duma ilusão perdida.
As lágrimas, a raiva incontida, os insultos que o seu companheiro receberia, ouvia-os eu, ali, estupefacto, daquela mulher ainda jovem que se apressava em saltar duma ligação que a sufocava. E toda aquela viagem, longas cinco horas, foi um não acabar de um livro de queixas.
Quase no final da viagem, já o Tejo espelhava todo o rigor do azul da tarde e as chaminés das refinarias salpicavam de fumo branco o ar limpo, aquela mulher, na pose de quem interpreta o fado errado, pronunciou:
- Tenho de fugir, ele cerca-me, não me deixa viver. Até mandou alguém esperar-me à estação para que eu não me desviasse!
- Mas assim, não pode viver. Tem de fazer qualquer coisa. Porque não acaba com tudo duma vez?
- Estaria perdida. Ele nunca mais me deixaria viver a minha vida. Para onde fosse, ele havia de seguir no meu encalço.
Entretanto, a nossa composição entrou em Santa Apolónia. Olho para o exterior a examinar as pessoas e o espaço.
A jovem mulher espreitou também e de imediato reconheceu alguém na estação e desabafou:
- Eu vi logo que ele não confiava em mim. Veio o meu sogro vigiar-me.
- Pode ser apenas para ser simpático...- disse eu para a animar.
Mas ela parecia contrariada. Depois o comboio imobilizou-se e saímos.
Ela, ignorando-me totalmente, desceu e dirigiu-se a um cavalheiro que vestia gabardina de tom cinza e boné de fazenda e efusivamente se abraçaram e entabularam uma conversa amena.
Perplexo, contemplei a cena e passei em revista todas as lamentações ouvidas daquela mulher. E fiquei atónito.
Ao passar por eles, ela esboçou um breve e discreto sinal com o olhar, como a pedir-me silêncio, enquanto prosseguia uma conversa familiar com o cavalheiro que dizia ser seu sogro.
E eu segui pensativo para mais umas longas horas de viagem.
Manuel Guimarães (1982) Odisseia da Memória




sexta-feira, julho 08, 2005

A perda da inocência

- Tens aqui a cesta. Já sabes o que tens a fazer! – Falou a mãe de pé.
E o miúdo olhava com os olhos lisos de espanto e revolta, quase a deixar fugir uma lágrima.
- Sim….vou ao ribeiro. Mesmo até à água!?... – e a voz saía-lhe em murmúrio.
- Não custa nada, chegas-te perto, mas não caias, e depois é só voltares a cesta.
Dentro da cesta, seis cachorrinhos mexiam, ainda cegos, tacteando as canas à procura de conforto, do quente e macio úbere da mãe, que longe uivava presa à casota. Depois davam ganidos que calavam fundo no coração daquele menino.
O menino, de cesta na mão, atravessou devagar os campos, um a um até descer ao ribeiro orlado de velhos amieiros.
Junto à margem limpa e tosada do gado, sentou-se um pouco e recuperou o fôlego. Espreitou a corrente da água que interminável fluía entre pedras roladas, limos e lírios bravos. Olhou mais uma vez, no fundo da cesta aqueles seis cachorrinhos, dois negros e quatro brancos, ainda cegos.
Então, empurrado pela ordem recebida, despejou num gesto cego a cesta na corrente. E os seus olhos ficaram alagados de água e os soluços subiram no seu peito franzino em tropeções descompassados.
Largou depois a correr por entre os fenos que secavam ao sol como se atrás dele viesse a sombra pesada da culpa, na forma dos ganidos sussurrantes dos cachorrinhos.
Chegou ao velho coberto e foi acocorar-se num canto, atrás dos portões de ripas de castanho. Colocou a cabeça entre os bracinhos magros e chorou, chorou. Por fim, adormeceu sentado e encostado às tábuas quentes do portão.
No sonho do menino, os cachorrinhos voltavam-se para ele no fundo da cesta e abriam, por fim, os olhinhos tristes.

M. Guimarães, Odisseia da Memória.

Choro por ti

Choro por ti
a paz podre
caída em desgraça nas repartições
das secretarias de embaixadas
nos areópagos do mundo

Ferida nas palavras duras
como punhais que rasgam a carne
jovem dos crentes
que se imolam em ondas de ódio
servil cego desumano

Choro por ti
paz adiada
em tempos duros
em que o negro da morte
tolhe o passo
indefeso dos que se sonham livres

Choro por ti paz
vendida sob a mira certeira
das armas tintas de sangue vivo

Choro por ti
paz traída nos gestos diários
da nossa ostentação
da nossa arrogância

Choro por aqueles que perderam
o direito de escolher o caminho de amanhã
e que nunca mais
verão a dança dos pássaros
nem o brotar de nenúfares
das imundas lamas.
M.Guimarães (2005/07/07)

quinta-feira, julho 07, 2005

Teus passos



Sigo os teus passos
Ao longo da fita molhada da areia
Mas os teus passos seguem
mais distantes
mais fundos

E quando os meus
se aproximam
Uma vaga de espuma e sal
Apaga da areia o teu rasto

Então levanta-se
No fundo da praia
Um vento frio e áspero
que varreu todas as tuas marcas
e deixou apenas
uma traço ténue

Dentro de ti não passou o vento
mas veio a água e lavou
todas as imagens
dos meus passos
que atrás de ti
se perdiam
gastos.

M.Guimarães (2005)

terça-feira, julho 05, 2005

Mestre Caeiro


Neiva Molossi Passuello, Pastor e rebanho


Mestre
Empresta-me o teu cajado
E deixa-me
Espalhar as minhas ideias
Pela encosta verde

Mestre
Deixa-me seguir
Esse impulso de apenas poisar o olhar
Límpido e sereno
Na doçura
Do verde dos pastos
E nas multicolores pétalas
Iluminadas do sol

Mestre
Os chocalhos já soam
Na minha cabeça
E as ovelhinhas brancas
Saltitam divertidas
Por cima das complicadas
Problemáticas deste inferno
Na minha mente

Mestre
Com o teu chapéu de palha
Sentado à sombra de um freixo
Alinho as minhas ideias
Sobre o fundo verde
Enquanto o sussurro suave da brisa
Me refresca a fronte.

Mestre
Deixa-me refazer este mundo
E torná-lo simples
Como as cores simples do prado

Por que pisar as flores
Rasgar o bosque
Prender a água
Calar o pássaro
Se precisamos apenas
Encontrar o modo simples
De nos sentirmos
Flor bosque fonte e ave.
M.Guimarães(2005)

domingo, julho 03, 2005

Para Sophia


Passou ontem um ano após a morte de Sophia. Mas ela mantém-se entre nós com a força da sua palavra mágica. Em sua homenagem, apresenta-se agora um poema que há um ano se fez.


«Não se perdeu nada em mim» ( Sophia)




No fundo do azul do olhar
Esbraceja um mar que vive
Para além do fio cortante do horizonte

Permaneces
Em coral, nos búzios
Que ressoam a sempre viva melodia do mar

Sob os pinhais na curva das dunas
Na penugem dos fenos marinhos
Nas flores lilases dos ásperos cardos
Na luz branca e sincera da cal
Das casas baixas aninhadas nos regaços das dunas.

No voo do pássaro azul
E no cavalo verde que salta a sebe de maracujás
E no jardim ponteado de flores de trevo
E de seixos colhidos na orla da onda

No verbo exacto
Arrancado do caos humano
Num tempo inseguro e inexacto
Que urge emendar e reconstruir
Com a lição dos deuses
Abandonados

Mesmo depois
Da ausência
Viverás ainda no florir das violetas
No respirar ansioso das vagas
No raio de sol quente e justo
Que nos atravessa e nos limpa
A alma.

M.Guimarães (2004)

sábado, julho 02, 2005

Penso...


Há momentos na vida que é necessário parar. Deixar que a poeira assente. Depois, tendo as ideias no lugar, dizer o que a mente pensou, se alguma coisa tem a dizer.
É isso mesmo que tenho de fazer face às surpreendentes medidas que nos couberam, enquanto professores, no imperioso sacrifício do combate ao défice.
Se por um lado a lógica corporativa me impõe a revolta; por outro lado, sei que não sou ilha e que o meu bem pessoal não pode ser realizado à custa dos outros.
Assim sendo, espero que o governo não desperdice em «show off» os tostões que quer poupar, nem se esqueça na ânsia de retirar direitos adquiridos que a batalha mais importante a travar é a de criar condições para o crescimento económico.
E acerca disso, muito pouco tenho ouvido falar. Se as finanças são mais importantes do que a economia, pode começar já hoje mesmo a poupar o Primeiro Ministro: despeça o ministro da economia e baixará já nuns milhões de euros a despesa pública.
Afinal que grandes medidas têm sido tomadas para aumentar a competitividade das nossas empresas? Que sector económico foi restaurado? Que nova dinâmica se empreendeu para fugir ao grande marasmo que se abate sobre todos nós?
Coisas óbvias como o gasóleo profissional, energia a custos controlados para a indústria, crédito facilitado para a abertura de novas empresas...Disso ninguém fala, depois espantamo-nos com o êxito dos chineses e o dos nossos «hermanos» espanhóis...
Para gerir o pouco que se tem não é preciso ser economista, qualquer dona de casa eficiente do tempo da velha senhora fá-lo-ia sem pestanejar. Mas para criar riqueza, criar uma dinâmica ganhadora para isso é preciso muito mais do que contas afinadinhas (como quem diz, pelos vistos nem aí...).
Espero para ver. Pode ser que depois do quente verão e após uns mergulhos retemperadores apareça alguma ideia luminosa. Até lá, fico naquela pose que Auguste Rodin genialmente esculpiu: penso, medito, espero.

terça-feira, junho 28, 2005

Tempo para balanço

A inspiração anda pelas ruas da amargura. O trabalho é muito, e o corpo e a mente não aguentam tudo. Por isso, o melhor é parar e aguardar que a musa volte de férias e as energias se reforcem.

domingo, junho 26, 2005

A Roda


imagem colhida no Google


Eu tinha uma roda
Feita de pneu
Rodava e rodava
Na polida calçada

Eu tinha uma roda
Preta de breu
Girava na vida
E a vida saltava
E seguia veloz
Em correria danada

Até que um dia
A roda quebrou
Já não rodava
Ninguém a lançou

Na dureza da pedra
Fria da calçada
Ficou distante e muda
A criança que jamais sou.
M.Guimarães (2005)

quarta-feira, junho 22, 2005

A promessa verde dos frutos



Hoje importa a aprender a lição dos frutos
É preciso saber esperar
Aguardar a hora certa
O momento

Antes que a gula desfaça o gosto

Há tempo para florir
Para se fazer fruto
Ganhar sabor
para ganhar corpo
Tempo para amadurecer

E com prazer
Tempo de provar
o fruto.
M.Guimarães (2005)

domingo, junho 19, 2005

Dobadoira

Minha mãe tinha uma dobadoira
Feita de tábuas de pinho
Fê-la o meu padrinho.


Toda a noite
sob o luzir trémulo da candeia
enquanto o vento uivava sobre as telhas
a dobadoira
rodava
vezes sem conta
E o novelo do linho
E a trama da vida
se enovelavam juntos
Num rodopio sem fim.

- E meu home que não vem
que anda por esse caminho
E a noite se faz mais noite
E o pão que tarda em cozer
E os meninos que dormem.
Menos aquele anjinho
Que Deus o tenha.
-Mas rais parta ó fio!

E o peito de minha mãe
arfou mais fundo
e sua voz se embargou
E quedou-se a olhar pela janela
Na fundura da noite.

M. Guimarães (2005)

sábado, junho 18, 2005

Poema em construção

Para que se defina o poema
Três coisas são fundamentais:
Partir de ideias, sinais

misturados em cadência
Dando a impressão de sentir
na inteligência
aquilo que os demais
têm na vivência.

Por fim
Compostos em harmonia
E silêncio, sons e ritmos
Derramam no sentido
A melodia da alma.

M. Guimarães (2004)

Mais um recanto verde da colina que circunda a minha casa. Pena é que os sucessivos incêndios tenham enfraquecido os sobreiros.
manuel

quinta-feira, junho 16, 2005

A minha horta



Olho para a minha horta e recordo Cesário Verde.

«Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:
Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!»
(Cesário Verde, De Tarde)

quarta-feira, junho 15, 2005

Recanto Verde



Um pequeno recanto verde, com a luz a interagir com o verde e a humidade que se exala do solo. Neste recanto a Terra ainda respira. Vou fazer o impossível para manter viva e verde esta nesga do meu pequeno mundo.

Convite







Venho muito respeitosamente
Com um olhar de soslaio e cândida perversão
Convidar a gentil dama a quem desejo
Como um galgo entontecido
Para uma virtual festa


Traga a camisa de seda
com aquele longo, longo decote.
Pode pôr esse perfume de violetas
colhidas junto às veredas
que serpenteiam a serra

Então
que seu peito arfe
e peça
um imenso beijo
e que lhe acaricie a nuca e
a pele macia do seu pescoço



Já no átrio
Saboreie
Os aromas frescos
Dos pêssegos
Aveludados.


Beba um pequeno gole
Desse adocicado
vinho rosé
e experimente o sabor
de colher um raio de sol
na varanda voltada ao poente.


Sentirá então no seu corpo
Um fio de água correndo
Que tornará sua sede
Mais funda
Mais quente.
M.Guimarães (2004)

terça-feira, junho 14, 2005

Minha aldeia é todo o mundo

A Galáxia de Marconi está a consolidar-se, definitivamente. Hoje, ao abrir esta página, vejo que em todos os continentes houve alguém que passou por aqui. A todos os que por tão longe cá acederam deixo-lhes um desafio: deixem uma palavra, um fio de conversa, uma ponte para fazer deste planeta a grande aldeia de todos.

segunda-feira, junho 13, 2005

Até amanhã, camarada



Até amanhã Camarada.
Um dia
Ainda havemos de chegar
À Estrada Grande
E ao olharmos para trás
veremos que todos virão
mais irmãos e mais livres.

Adeus Eugénio, até já



Adeus Eugénio
amigo do sol
e da água
dos beijos e de flores
dos barcos que balançam
da poesia feita de coisas simples
com as quais se compõe a vida
na sua vertente original
e única.

Estaremos contigo enquanto
a melodia única
e vária dos teus poemas
iluminar
a nossa humanidade.
Manuel Sousa

Atlântida




Olho em frente
e vejo a largueza do horizonte
e apronto o barco

Depois com a firmeza
de saber que há uma distância
longa que é preciso encurtar
digo à tripulação:

- Mãos à vela,
força no leme,
sorvei o vento
e temperados pelo sal
da espuma das ondas
e batidos por um sol brilhante e vivo
alcançareis as ilhas
de praias brancas
e águas límpidas.

Lá não se crestará a pele
nem se perderá
o intenso aroma
dos frutos.

Lá as estrelas
serão mais vivas
e o azul do céu mais fundo
e os corpos renascerão
em cada gesto de amor

E os lábios rosados
serão mais doces
e entoarão a melopeia
suave do gozo e do prazer
misturado com o bater
ritmado das ondas.

Por isso
eu, marinheiro,
subi a bordo
e traçada a rota
zarpei rumo
a ti.

M.Guimarães (2005)

sábado, junho 11, 2005

Tese sobre lenços de namorados


Lenço de namorados.

No dia três de Junho defendeu tese de doutoramento sobre a linguagem dos «lenços dos namorados» Adriano Basto, em Ourense (Galiza).
Esta forma peculiar de cultura popular merece-me a maior das simpatias porque expressa como poucas o sentir ingénuo e autêntico das nossas gentes do Minho.
Uma das quadras citadas :
Aqui tens meu coração
E a chabe pró abrir
Num tenho mais que te dar
Nem tu de me pedir.

sexta-feira, junho 10, 2005

Dia de Portugal - Variações sobre o hino




Pschiu!

Silêncio. Tu aí, endireita o peito, sacode o pó das calças. levanta a fronte. Enche o peito de ar.
Aí, tu, deixa a lamúria, levanta-te e escuta.

E soam os primeiros acordes. E já todos alinhados, deixando de lado as mesquinhas cargas que o dia a dia amontoa.
E soa a voz entusiasta: «heróis do mar, nobre povo»...
E diz o miúdo:
- E foram todos aqueles: o Vasco da Gama, o Bartolomeu... o Gil Eanes.
- Sim, e também o Manuel de Sepúlveda e sua esposa que morreu na praia dos Cafres, e o Fernão Veloso que contava histórias de cavaleiros nos reinos da Bretanha.
Esses todos. E até os que empenharam as barbas e que ameaçaram fechar os mares à soberba dos bravos turcos.
- Sim todos esses. E também os que naufragaram e que maldisseram a hora em que se despediram da praia do Restelo.
«Nação valente, livre e imortal»...
- E somos todos nós? não é?
-Sim e todos os que fizeram desta terra uma nação livre. Expulsaram os ditadores, deram ao povo o direito de traçar o seu destino.
E seguia o hino: «Contra os canhões, marchar»...
-Sim, é preciso marchar contra os canhões: a inércia, a cedência ao mais fácil, a espera absurda de um salvador, o egoísmo de cada um e de cada grupo. Mais do que os de fora, os canhões que trazemos por casa: os que fogem ao fisco, os que subornam, os que usam das ajudas do Estado indevidamente...
E soará o hino, em uníssono, convocando cada um para a grande façanha de fazer deste país um país a sério, que não se adie mais. Que desate de vez as peias que o limitam.
Se todos dermos o nosso melhor, ficaremos mais confortados e poderemos descansar e usar da beleza deste espaço paradisíaco que nos foi destinado.
Portugal, sempre!

quinta-feira, junho 09, 2005

O Porto e as festas populares


Ribeira (azulejo)

«Quem vem e atravessa o rio, junto à serra do Pilar» canta Rui Veloso. E com a melodia escorre amor e saudade do velho burgo pardacento.
Recordo o Porto, ainda era eu jovem, puxado numa serpenteante e estonteante corda humana, que descia voando desde Paranhos, pela Rua de S.Catarina, até desaguar na Ribeira. Foi um S. João inesquecível.
Depois, numa orgia de sons, luzes e aromas, nos jardins do Palácio Cristal era afogar a sede de muitos passos que palmilharam as ruas da cidade; resgatar as forças perdidas em tudo que a gula pedisse e a carteira deixasse.
E o Porto ficava nesse dia pequeno como a minha aldeia. Todos os poisos nos eram familiares e as caras que víamos pareciam as dos vizinhos da porta.
Então, para fazer a festa o essencial era a alegria do povo, de alma solta, coração a vibrar, e a música a brotar em tons foliões.
E a noite corria alucinada e cintilante do brilho contagiante da euforia. Foi então que eu me senti pela primeira vez portuense. E hei-de sê-lo enquanto estas doces redordações me afagarem a memória.

terça-feira, junho 07, 2005

O senhor tem tosse?



imagem retirada de Google (autor desconhecido)


Este episódio tem uma base real, deu-se com um cidadão contribuinte - o senhor Silva - , com todas as suas obrigações fiscais em dia e que é um adepto de um estado social que, porque cobra, deve retribuir com serviços de qualidade.

«São seis da manhã. A noite foi horrível, para o senhor Silva, não pregou olho. Era aquele peso imenso no peito, quase esmagado, a respiração difícil. Parecia que os batimentos cardíacos se lhe emaranhavam em ritmos desconexos. E então era aquela dor silenciosa mas pungente que tomava conta de todos os seus músculos. Era como se mãos invisíveis lhe apertassem o peito e o pescoço. Dificilmente um sopro de ar passava sem deixar uma marca dolorosa.
Não restava mais nada. Meio zonzo de sono e cansaço, tentou refrescar o rosto e lembrou-se do SAP aberto ali perto, no hospital da vila.
Vestiu-se e dirigiu-se às Urgências.
Fez a ficha.
Passada uma hora, na sala deserta, uma funcionária com a ficha na mão pronunciava o seu nome em voz alta.
- É na sala dois. O médico está à sua espera.
Então, apesar do mal-estar do corpo, sentiu um pouco de ânimo. Isto afinal funciona! - pensou.
- Vá sente-se. Diga lá o que se passa!
Então, o senhor Silva desfiou a sua história, a sua dor de um peito apertado, dos músculos doridos e presos, da imensa aflição que tomava conta de todo o seu corpo...
- E o senhor tem tido tosse?
- Não, senhor doutor. Não tenho tido.
- Custa-lhe respirar. É?
- Sim, mas não estou constipado, não tenho tosse, nem expectoração...
O médico pegou no estetoscópio e pediu para ele levantar a camisa. Auscultou-o muito apressadamente.
Depois sentenciou:
-Ah!...bom, bom, bom...O senhor tem tido tosse!
-Não, senhor doutor, há mais de dois meses que não tenho.
- Olhe, isto não é nada. Vai ver que isso passa.
Ele bebeu aquelas palavras com o desencanto de quem vê perder-se o último comboio. Ao contrário de outros momentos, a dor não diminuiu, cresceu, agora alimentada com a desconfiança e o desalento.
- Olhe, vou-lhe receitar um xarope. Tome-o duas vezes por dia até ficar bom! - e garatujou no papel timbrado o nome do fármaco.
Enquanto isso, o nosso doente olhou por baixo da mesa e viu que o médico estava com o pijama por baixo da bata e calçava uns chinelos de quarto.
Seguidamente, depois de um indisfarçável bocejo, o médico pronunciou:
- Pode ir. Você tem tosse, não tem?
Sem um exame, sem uma análise mais atenta do que se passava consigo, vencido, o senhor Silva saiu do consultório com o papel na mão, espantado, sem acreditar que trazia na mão, afinal, a receita para um xarope da tosse.
Duas horas depois, voltou às Urgências e foi encaminhado para o hospital distrital, onde lhe diagnosticaram uma inflamção no diafragma. »

Hoje, o senhor Silva tem na sua farmácia na casa de banho, a caixa já amarelecida do xarope da tosse como troféu duma noite de aflição e de um encontro imediato com a incompetência, em que, para além dos seus males, lhe inventaram uma tosse.
Manuel Sousa (Publicado no jornal Preto no Branco, 2005)

segunda-feira, junho 06, 2005

Viagem







Não hei-de ficar sentado
vendo arder
as últimas achas na fogueira
ainda me sobra um impulso
o último


Para trás
ficará todo este mundo do tamanho
da covardia
da rotina sedimentada.


Para ser mais
para vencer
esta imensa inércia
é preciso recomeçar
ouvir o bater do coração
deixá-lo partir
levando o alforge
carregado de esperança


Ser de novo
o aprendiz das coisas
simples e vivas.
M. Guimarães (2004)

domingo, junho 05, 2005

Cansaço

Professor também trabalha.
Por isso, como no final do ano aperta, durante alguns dias: testes, avaliações, muitas reuniões...
O blog terá de moderar o passo e aguardar acalmia no canal.

sexta-feira, junho 03, 2005

A Nódoa

Este texto foi postado como comentário na «república dos pêssegos»:

«O homem elegante chegou ao espelho e disse:
- Tenho uma nódoa no fato que me custou uma fortuna na barraca do Armani.Vou levá-lo a uma lavandaria para ver se a tiro.
- Sr. S...isso não sai. - disse a rcepcionista. - É uma nódoa de mentira, essas são as piores! Primeiro cresce o nariz...e depois fica a mancha. Nunca mais sai. Fica marcado para sempre.
Agora quando falar, todos pensarão:- talvez ele queira dizer o contrário!E o fulano, apesar de chique ficou enxovalhado .»

Espelho meu

Uma nova versão do famoso conto de fadas:

Está um primeiro ministro ao espelho e diz:
- Espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais mentiroso do que eu?
O espelho arrepiou-se com a verdade daquelas palavras.

quarta-feira, junho 01, 2005

A morte anunciada da Constituição Europeia


foto colhida em blog metalicworld.

«Lhe deu Saturno Quebranto» (G.V.)


Depois do NÃO em dois dos estados fundadores da União Europeia,está tudo dito sobre este projecto de Constituição Europeia. Cá por mim, o melhor será concertar esforços, partir para qualquer coisa de mais consensual, antes que tudo isto se desfaça e tenhamos uma Federação Jugoslava em grande escala. Por isso, não contem comigo se insistirem num referendo inútil.
Tenho dito.

terça-feira, maio 31, 2005

Labirinto




A mãe trazia os dois filhos pela mão
chegou até à borda da seara
num instante deixou-os


Partiu depois
Desaparecendo na distância
E os pequenos ficaram ali

Uma brisa fagueira batia as espigas
e ondas corriam
a vastidão da messe

Num impulso repentino
Os pequenos irromperam em correria
por entre as espigas
Que amadureciam ao sol

E esculpiram na mancha verde-cinza
Um rasto labiríntico
Com o emaranhado dos passos
Pequenos e leves.

Enquanto no ar
Dois corvos atentos volteavam
E furtivamente
Mediam a dimensão
Da façanha
Dos novos ícaros.
M.Guimarães (2005)

segunda-feira, maio 30, 2005

Que te direi

Que o descampado
Ficou mais ermo
Que as violetas e as boninas
Se crestaram ao sol

Que um rio de águas turbulentas
Lavou a tua imagem doce
E ficaram apenas os calhaus
polidos
ossos despidos e frios

Que o teu olhar partiu
que nunca mais
haverá um gesto
afectuoso
Em teus dedos macios…
M.Guimarães (2003)

E agora?

Os Franceses disseram NÃO no referendo à consituição europeia. E agora? Será que o veículo avançará com uma roda presa?
Para já estou no NIM: referendar para quê? Primeiro arranjem um texto mais consensual, depois veremos.

Este não é o Benfica

Espero para ver o que dará este Benfica. Não é com certeza aquele que esperávamos ver.
A jogar deste modo, com as garras de águia cortadas, começo a pensar seriamente se o campeonato não lhe terá saído numa lotaria.
Parabéns ao Setúbal! Pela dignidade com que os seus jogadores e equipa técnica encararam este jogo. Como souberam ver que quando o Benfica tivesse pela frente jogadores que se aplicassem, a pose de vitória cairia .

domingo, maio 29, 2005

Banco de Jardim


Foto retirada da NET (www.pbase.com/ diasdosreis/imagens)



No banco do jardim
Aqueles lamentam o tempo

Vieram vergados pela vida
fingindo participar
neste banquete dos vivos.

Agora apanham destroços
Imagens gastas de efémeras glórias
Epopeias forjadas na memória.

Carregam o sobrolho
lastimam o rumo das coisas
de uma vida que veloz
lhes foge e os estranha.
M. Guimarães (1982)

quarta-feira, maio 25, 2005

A tempestade chegou!




Fujam! Vem aí o défice.

O mendigo da esquina

Na esquina da rua, aparece agora, dia sim dia não, o mendigo que pede esmola.
- Tenho tanta peninha dele!
Usa fato e gravata, cabelo grisalho, fatos de costureiros italianos, e pede com convicção a quem passa,ou a quem se arrasta, um pouquinho mais, pois o pouco que tem é muito pouco. É que entrou-lhe em casa um monstro horrível que lhe come toda a alegria e o deixa com o credo na boca e com as promessas a engasgá-lo.
O pedinte é boa estampa, e recorda-me um ceguinho que está na rua dos capelistas em Braga. Pode ser que os transeuntes apiedados de um sujeito tão bem apessoado se deixem embalar na lengalenga e descaiam com uns trocos.
- Olhe, não posso dar muito, mas deixo-lhe um conselho: veja lá se os afilhados e os sobrinhos não lhe entram em casa e não o deixam ainda pior.