terça-feira, março 21, 2006

Quando Vier a Primavera



Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

Vá lá, tente outra vez

Escute!
Não vá depressa,
Sabe?
Para além da prosaica frieza das horas
Há uma nesga de poesia.

Por detrás das palavras planas e lisas
Há a sinuosa aventura do poema

Vá, dispa-se desse rigor formal!
Não se constroem
Paraísos sem a melodia da voz
Feita palavra.
Manuel Guimarães

domingo, março 12, 2006

Encruzilhada


Estava eu na berma da estrada, junto a uma encruzilhada.
E chegou um viajante. Trazia um olhar perscutador e parecia que não acertava com o Norte. Chegou-se a mim e confessou. O rumo tinha sido traçado em tempos idos, com a ajuda de cartilhas elaboradas em laboratórios onde a história se moldava pela sopro inspirado dos Mestres. Mas, agora que os Mestres se esgotaram ou partiram para o reino imenso das brumas, o viajante paladino da vida, estava perdido.
Não havia mais paraísos resguardados por altos muros, nem deste lado dos muros viu ninguém esmagado pelos grilhões.
- Mas para além desta encruzilhada, onde posso encontrar a minha PÁTRIA? Aquela em que somos todos irmãos sob a imensa bandeira da paz e da prosperidade?
Como te compreendo, viajante faminto dos ideais que floreciam em oníricos reinos de abundância e paz.
Mas neste lugar, mesmo no meio desta encruzilhada, ninguém te dará a bússola certa. Apenas te acenam com promessas fáceis, como em campanhas de liquidação de lojas finas. Vás por aqui, ou por ali, o teu destino é sempre ajustado à imensa falibilidade dos prognósticos.
Qualquer que seja a tua escolha, o ardor do sol, a inclemência da chuva, o arrepio do vento, a dificuldade da subida, o peso do carga são um problema teu e de todos os que chegados aqui tenham de escolher um caminho.
- Mas no final, a celebração vai compensar-me de todas estas provações!?...
- É bom saber-te confiante! Mas depois desta encruzilhada, nada mais há do que a certeza de que a tua felicidade será igual à tua desilusão.
Nesse momento chegou um carro colorido, cheio de enfeites circenses, com uma música garrida e cativante. O viajante não me ouviu mais. Partiu atrás do carro que seguiu rodeado duma nuvem de pó.
E eu fiquei a pensar: qual o caminho? No acto da minha escolha serei apenas eu, ou quem escolhe ficou muito atrás, bem por detrás do meu acto quase involuntário da escolha?

M.Guimarães , Pensar o Hoje (2006).

Imagem: www.marciomelo.com/ LuneenLion/Encruzilhada.jpg

quarta-feira, março 08, 2006

Mulher

a ti que ficas em casa e guardas com tua sombra o lar e preparas o pão e passas as tuas mãos ternas sobre as coisas que nos dão conforto.

a ti mulher, que na frenética respiração das máquinas misturas o bater do peito com o ritmo dos teares.

a ti mulher carregada do negrume das repartições em resmas de ofícios, que aguardas com olhar doce, cansado, irritado, o público contribuinte.

a ti mulher, que na competição cega das empresas reclamas a promoção, a chefia que longos milénios te negaram.

a ti mulher de bata branca que em zelos vários fazes saúde, educação.

a ti mulher, na lenta conquista do poder, nos media, na organização da res publica.

a ti mulher que és mãe, avó, esposa, amante, namorada, viúva, freira, companheira, amiga, camarada, prostituta, manequim, teenager, nas tuas múltiplas metamorfoses duma vida intensa.

A todas vós obrigado.

segunda-feira, março 06, 2006

Será uma retoma?


Passou um mês, um longo e frio mês. O mundo girou, as notícias caíram em catadupa, as graças e as desgraças sucederam-se por este mundo pequeno e cada vez mais impróprio para consumo. Mas uma espécie de cansaço, uma ausência total de motivação, acrescida a muito trabalho, fizeram com que este blog adormecesse, numa hibernação total.
Mas, porque a temperatura começa a subir e porque hoje acordei para aqui voltado, decidi retomar o fio das coisas e acrescentar este breve apontamento.
Deixo-vos com este boneco de neve apanhado, lá para as alturas de Montalegre, onde o frio é como o de antigamente.