quarta-feira, maio 18, 2005

A minha vida dava um livro - Parte III


St. Etienne.

(cont.)
Anos mais tarde vamos encontrar o Zé já casado, rodeado de filhos e entregue ao amanho das terras, na quinta do Redondo. No tempo, o pão era escasso e as bocas muitas e famintas.
O milho escondido e negociado às escuras, para que os homens do regedor não o pegassem para o Grémio.
E a epopeia do milho sai-lhe toda inteira, todos os passos e canseiras, todo o suor e tormentas. Nas lavras custosas, com vacas mansas a puxar os arados, nas regras em sobressaltos porque era preciso tratar das águas. E cada vez que o trilho junto ao ribeiro era calcado até à levada, era mais uma promessa de espigas que brotava da terra.
E os olhos brilham-lhe quando nos conta aquela noite com a eira cheia de carros de milho. As nuvens a ameaçarem o trabalho do dia. Mas logo se compôs ali mesmo um rancho do povo do lugar que, sob a batuta enérgica do Zé, depressa despiu das palhas as lautas espigas. No fim, apesar do cansaço, levados pelo entusiasmo e excitados pelo bagaço, novas e velhas gastaram até aos limites as forças no corropio do vira.
Nas tardes de domingo, de chapéu de feltro caído para a fronte, de vara na mão, lá partia o Zé na ronda habitual, porque outra paixão o cegava - o gado. Conhecia-o como o mecânico conhece os motores: as suas manhas, as suas doenças e também as curas caseiras; sabia-lhes o peso, a idade e a força. Quando fala nos touros e nas vacas os seus olhos cintilam: E gaba-se: «dei gado para as melhores quintas de Taíde, Simães, Garfe, Vilela...». Não havia gado das redondezas que ele não conhecesse. De lavrador em lavrador, de caseiro em caseiro, visitava-os a todos, na mira de um negócio, de um pequeno lucro.
Mas a estreiteza deste pequeno mundo não o satisfazia. Embora levasse já mais de um carro de anos, também ele sentiu a tentação da França. E foi dos primeiros a abalar, deixando a quinta entregue aos cuidados da Zirinha, sua mulher, e dos filhos ainda pequenos.
E conta-nos: «Quando chegámos à vila de Saint Étienne, estrangeiros éramos meia dúzia e a França ainda era dos Franceses». Depois vieram os «algerianos» e os marroquinos e acabou o sossego. O contacto com os franceses foi sempre amistoso e receptivo.
As viagens longas e cansativas trazem-lhe recordações de múltiplas peripécias. Da bagagem que se perdeu, lastimando pelas lembranças da terra que levava para amenizar a saudade, do comboio que apanhou trocado e em que perdeu mais dois dias na viagem.
E destaca especialmente aquela viagem de automóvel, interrompida por um brutal acidente, que o deixou às portas da morte. E lembra o tratamento que lhe deram no hospital em Avignon e reconhece que o povo francês era um povo humano, acolhedor e solidário.
E foi aquele episódio que quase o traíra que lhe deu a possibilidade de se estabelecer de vez em Portugal. O seguro do acidente e algumas poupanças permitiram-lhe comprar a quinta do Bombo, onde, já de depois de totalmente restabelecido, foi durante muitos anos um dos lavradores mais conceituados no amanho da terra, na criação de gado e na cultura do vinho da sua aldeia. O seu apego ao trabalho passou para além dos oitenta, numa energia que parecia não acabar.
Hoje, o cansaço e os anos quebraram o seu vigor, mas não o seu verbo fácil e a memória viva. Por isso, quando alguém o interpela, lá desfia numa toada serena a sua repleta vida. E remata, por fim, « a minha vida dava um livro!».

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