- Tens aqui a cesta. Já sabes o que tens a fazer! – Falou a mãe de pé.
E o miúdo olhava com os olhos lisos de espanto e revolta, quase a deixar fugir uma lágrima.
- Sim….vou ao ribeiro. Mesmo até à água!?... – e a voz saía-lhe em murmúrio.
- Não custa nada, chegas-te perto, mas não caias, e depois é só voltares a cesta.
Dentro da cesta, seis cachorrinhos mexiam, ainda cegos, tacteando as canas à procura de conforto, do quente e macio úbere da mãe, que longe uivava presa à casota. Depois davam ganidos que calavam fundo no coração daquele menino.
O menino, de cesta na mão, atravessou devagar os campos, um a um até descer ao ribeiro orlado de velhos amieiros.
Junto à margem limpa e tosada do gado, sentou-se um pouco e recuperou o fôlego. Espreitou a corrente da água que interminável fluía entre pedras roladas, limos e lírios bravos. Olhou mais uma vez, no fundo da cesta aqueles seis cachorrinhos, dois negros e quatro brancos, ainda cegos.
Então, empurrado pela ordem recebida, despejou num gesto cego a cesta na corrente. E os seus olhos ficaram alagados de água e os soluços subiram no seu peito franzino em tropeções descompassados.
Largou depois a correr por entre os fenos que secavam ao sol como se atrás dele viesse a sombra pesada da culpa, na forma dos ganidos sussurrantes dos cachorrinhos.
Chegou ao velho coberto e foi acocorar-se num canto, atrás dos portões de ripas de castanho. Colocou a cabeça entre os bracinhos magros e chorou, chorou. Por fim, adormeceu sentado e encostado às tábuas quentes do portão.
No sonho do menino, os cachorrinhos voltavam-se para ele no fundo da cesta e abriam, por fim, os olhinhos tristes.
M. Guimarães, Odisseia da Memória.
9 comentários:
que história triste, Manel....
Depois de "O Abismo Negro..." (http://www.void.weblog.com.pt), que teve o seu tempo, um outro ciclo se iniciou. Um ciclo que tem a ver com uma nova fase de vida e com novos ritmos e formas de estar que se impuseram. Um novo blog traduz/traduzirá isso. Espero ver-te por lá. O endereço é: http://duas-metades.blogspot.com
Um grande beijinho,
Sandra :)
A essa crueldade fui poupada...
Acabei de linkar este seu Blogue, tendo reparado que me linkou também.
Já agora, recomendo um outro blogue dedicado à Casua Belenense, igualmente fundado por mim, onde resolvi convidar mais algumas pesseoas para lá escreverem.
Gosto muito dele e pelso vistos há muita gente que gosta, sendo hábito os jornalistas por lá andarem.
Confira:
http://cantoazulaosul.blogspot.com/
Manel o teu post é muito triste e muito cruel e tão tão de cruel como de verdadeiro, eu també´m sei de casos desses, mas que fazer! perante isto, devi a castração das femeas ser gratuita, para não acontecer casos destes. Um beijinho
Olá Manuel. Todo o teu texto é de uma angústia envolvente. Uma história de vida. As crianças deveriam ser poupadas a tão grande crueldade, são marcas que ficam. Já nem falo nos pobrezitos dos animais pois ontras providências deveriam ter sido tomadas. Muito sensível o teu conto, com um deslizar de letras magnífico. Bjinhos
E nós que às vezes somos cruéis e necessitamos de quem nos proteja...
Pobres animais. Pobre criança.
Beijo *
A inocência dos olhos dos animais sentida pela inocência dos olhos de uma criança. É a tomada de consciência de uma luta desigual.
Olá!
Nossa!
História emocionante esta.
Uma narrativa muito forte e envolvente que retrata de forma magnifica uma verdade desse louco planeta em que vivemos.
Um abraço!
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