A velha camioneta de passageiros chegou. E a mãe e os dois meninos já lá estavam a aguardá-la na paragem.
A mãe trouxe a mala grande e a filha mais velha trouxe mais dois sacos em pano com outras coisas necessárias: roupas de cama e outras utilidades.
- Olhe, senhora. Tem que me chegar a bagagem para o tejadilho da camioneta, na mala já não cabe mais nada.
O cobrador correu a escada e subiu para cima da camioneta. Do chão, a mãe, a custo, levantou a mala e passou-a ao cobrador, que a prendeu com uma rede junto doutras bagagens.
- Mãe e as crianças entraram e sentaram-se os três no assento duplo. O cobrador chegou-se e perguntou:
- Então, é prá Póvoa?
- Sim, prá Póvoa. Se esta geringonça aguentar!…
O motorista voltou-se, levantou o boné em cumprimento e entrou na conversa:
- Pode ficar descansada, santinha. Isto ia até à França, se fosse preciso! Tem um motor alemão de origem…
- Ia, ia…Se não se puser pra aí a ferver como uma panela!... É o costume!
- Desta vez não há azar. Não é, ó Freitas?
O Freitas, cobrador, estava a fazer o troco e acenou apenas com a cabeça.
E lá seguiram viagem. Nas curvas mais fechadas a buzina da camioneta alarmava os passageiros e os pobres campónios que se abeirassem da estrada.
Quando Famalicão já estava à vista, naquela longa recta ladeada de milheirais viçosos, o previsto aconteceu. Não é que a camioneta começa a deitar fumo pela tampa do motor, que ficava mesmo à frente e ao lado do motorista?
- Ó Freitas, despacha-te, traz água, que esta coisa está a ferver!
- Se trouxesse a carne já a assava. – Arengou um passageiro, que se divertia com a cena.
- Ó senhor motorista, não nos queime aqui todos! Olhe pelo menos por este dois meninos que eu aqui tenho. O que havia de dizer a meu homem?!
- Sossegue, que isto não é nada. Daqui a pouco ela fica boa outra vez e vai por esta estrada fora como uma bailarina.
Depois de deitarem lá para dentro dois cântaros de água que o cobrador foi apanhar num tanque que ficava mesmo ao lado da estrada, o que se sabe é que a camioneta retomou a marcha e não voltou a deitar fumo pela tampa!
Uma hora depois, a camioneta estava a passar por baixo do velho aqueduto:
- Já se vê o mar! – disse em sobressalto o menino mas velho. - Lá ao fundo.!- e os olhos do menino brilhavam como a toalha prateada da água do mar que à distância se vislumbrava.
- Deixa ver! – pediu o pequenito.
Ele espreitava mas não via nada.
- Fica quietinho que logo já vais ver o mar.
Mar – palavra mágica que soava como um mistério que prestes se iria revelar para aqueles dois petizes habituados à pequenez do rio e das poças dos lavradores,.
Pouco depois chegaram ao fim do percurso, junto ao escritório da empresa.
- Chegamos, tiazinha.
- Eu não sou sua tia. Olha o atrevido!...
- É um modo de falar. Agora é só descer a bagagem e estão entregues.
- Já não era sem tempo – ripostou a mãe.
- Agora, Zé, esperas aqui com o teu irmão que vou ver se arranjo quem me leve a bagagem.
Passados alguns minutos estava de volta e vinha acompanhada dum sujeito meio curvado, que tossia um catarro velho de tabaco, com um boné e um bigode grisalho e queimado do fumo. Depois pegou na bagagem e perguntou:
- Para onde é, minha senhora?
- Para a Rua Latino Coelho.
-Ó, é perto, está com sorte!
O homem ia à frente e a mãe com os dois filhos pela mão seguia-o de perto.
-Mãe, já me doem as pernas... – queixou-se o mais pequeno.
- É já ali. Só falta um bocadinho.
Por fim, chegaram.
A casa tinha uns azulejos com motivos marinhos: homens do mar que puxavam as redes, mulheres de canastra de peixe à cabeça, Um outro poveiro de gorro na cabeça e o braço curvo e a mão a fazer pala sobre os olhos, mirava a lonjura da linha do horizonte.
A porta estava aberta, a mãe falou com a senhoria e acomodou as coisas nos armários, preparou as camas e depois disse aos meninos:
- Vamos lá ver o mar.
Os meninos davam saltinhos de euforia. Depois, seguiram-na.
Atravessaram uma, outra e mais outra rua.
- Nunca mais é! – resmungou o mais novito.
- É já ali. – tranquilizou-o a mãe.
- Já se ouve! – exclamou o mais velho.
Alcançaram, por fim o areal. E as ondas lambiam as areias, com ímpeto.
- Vamos molhar os pés.
E correram indiferentes aos ralhos apreensivos da mãe.
Depois veio uma onda que os molhou e os deixou tontos, quase caíram na água. Se não fosse a mão segura dum banhista adulto e logo ali se teria dado uma desgraça.
O sermão da mãe veio, e passaram a ter mais medo do mar, que não era a poça do Agro…
No dia seguinte, a história foi outra. O banheiro Mouco chegou-se aos rapazes que brincavam na areia:
- É hora do banho! - E um em cada mão, levou-os para a água.
O mais velho fez um tal alarido que se ouviu em toda a praia. E nunca mais ele quis entrar no mar.
O pequeno, esse achou imensa piada ser mergulhado nas pequenas ondas que espumavam.
Enquanto isso, a mãe observava, divertida, o verdadeiro baptismo de mar dos seus filhotes.
E assim decorreu aquele ano de banhos na Póvoa de Varzim, na longínqua década de sessenta. No ano em que se comentou em cochicho que Salazar caíra da cadeira.
Manuel Guimarães , Odisseia da Memória (2005)
1 comentário:
Adorei o teu conto, Manuel.Trouxe-me lembranças da época de veraneio
passada na Póvoa e das histórias, como essa dos banhos, era eu muito pequenita. Histórias verídicas que tão bem sabes contar. Bjinhos
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