Segunda-feira, Novembro de 1981, são sete da manhã.
Entro no comboio com destino a Lisboa. E vou sentar-me junto a uma janela. Como o frio apertava, enfiei-me todo no casacão verde.
Ouviu-se o silvo do homem da estação e a composição, num avanço bamboleado, pôs-se em marcha.
Colado o rosto à janela, via passar uma a uma as velhas casas amarelecidas do sol que avermelhado irrompia por detrás das construções.
Ao atravessarmos a velhinha ponte de ferro, a respiração foi mais pousada. Depois, chegamos à estação de Gaia. E entraram mais passageiros.
Pedindo licença, sentou-se a meu lado uma senhora, ainda de aspecto jovem e do género bonequinha.
Passados alguns minutos, meteu conversa:
- Então vai pra Lisboa?
- Sim, mas depois sigo mais para sul. Vou pra Faro.
Olhando para o meu saco de viagem e o aspecto de jovem quase imberbe, avançou:
- Vai pra tropa?
- Não, pra tropa não. Trabalho lá.
Tão novo e já trabalha?
- Tem de ser. Acabei o curso e tenho de trabalhar.
- Eu gostava de ir trabalhar. Mas não posso. O meu marido não me deixa.
A partir dali foi o desfiar de todo um rosário de amarguras, que uma relação aparentemente difícil ia acrescentando:
-O meu homem, não me dá um passo. Nem posso arranjar um emprego nem ter a minha independência.
- Mas ainda há homens assim!? – reagi.
- Se fosse só isso…
Conta, mulher, os teus sonhos desfeitos, a tua liberdade traída, o sufoco de seres apenas a arrumadinha guardiã do lar, que te acomodaste a uma vida pretensamente fácil. Que trocaste uma vida incerta pela carreira de esposa do promissor empresário. Depois, soltaste todas as tuas mágoas. Do arrefecer do amor, do crescer da repulsa, da tentação da fuga, da ânsia de encontrar alguém que te compreenda e te dê felicidade.
E ali, nela esverdeada carruagem de comboio, senti-me pela primeira vez confidente duma vida que girava em torno duma ilusão perdida.
As lágrimas, a raiva incontida, os insultos que o seu companheiro receberia, ouvia-os eu, ali, estupefacto, daquela mulher ainda jovem que se apressava em saltar duma ligação que a sufocava. E toda aquela viagem, longas cinco horas, foi um não acabar de um livro de queixas.
Quase no final da viagem, já o Tejo espelhava todo o rigor do azul da tarde e as chaminés das refinarias salpicavam de fumo branco o ar limpo, aquela mulher, na pose de quem interpreta o fado errado, pronunciou:
- Tenho de fugir, ele cerca-me, não me deixa viver. Até mandou alguém esperar-me à estação para que eu não me desviasse!
- Mas assim, não pode viver. Tem de fazer qualquer coisa. Porque não acaba com tudo duma vez?
- Estaria perdida. Ele nunca mais me deixaria viver a minha vida. Para onde fosse, ele havia de seguir no meu encalço.
Entretanto, a nossa composição entrou em Santa Apolónia. Olho para o exterior a examinar as pessoas e o espaço.
A jovem mulher espreitou também e de imediato reconheceu alguém na estação e desabafou:
- Eu vi logo que ele não confiava em mim. Veio o meu sogro vigiar-me.
- Pode ser apenas para ser simpático...- disse eu para a animar.
Mas ela parecia contrariada. Depois o comboio imobilizou-se e saímos.
Entro no comboio com destino a Lisboa. E vou sentar-me junto a uma janela. Como o frio apertava, enfiei-me todo no casacão verde.
Ouviu-se o silvo do homem da estação e a composição, num avanço bamboleado, pôs-se em marcha.
Colado o rosto à janela, via passar uma a uma as velhas casas amarelecidas do sol que avermelhado irrompia por detrás das construções.
Ao atravessarmos a velhinha ponte de ferro, a respiração foi mais pousada. Depois, chegamos à estação de Gaia. E entraram mais passageiros.
Pedindo licença, sentou-se a meu lado uma senhora, ainda de aspecto jovem e do género bonequinha.
Passados alguns minutos, meteu conversa:
- Então vai pra Lisboa?
- Sim, mas depois sigo mais para sul. Vou pra Faro.
Olhando para o meu saco de viagem e o aspecto de jovem quase imberbe, avançou:
- Vai pra tropa?
- Não, pra tropa não. Trabalho lá.
Tão novo e já trabalha?
- Tem de ser. Acabei o curso e tenho de trabalhar.
- Eu gostava de ir trabalhar. Mas não posso. O meu marido não me deixa.
A partir dali foi o desfiar de todo um rosário de amarguras, que uma relação aparentemente difícil ia acrescentando:
-O meu homem, não me dá um passo. Nem posso arranjar um emprego nem ter a minha independência.
- Mas ainda há homens assim!? – reagi.
- Se fosse só isso…
Conta, mulher, os teus sonhos desfeitos, a tua liberdade traída, o sufoco de seres apenas a arrumadinha guardiã do lar, que te acomodaste a uma vida pretensamente fácil. Que trocaste uma vida incerta pela carreira de esposa do promissor empresário. Depois, soltaste todas as tuas mágoas. Do arrefecer do amor, do crescer da repulsa, da tentação da fuga, da ânsia de encontrar alguém que te compreenda e te dê felicidade.
E ali, nela esverdeada carruagem de comboio, senti-me pela primeira vez confidente duma vida que girava em torno duma ilusão perdida.
As lágrimas, a raiva incontida, os insultos que o seu companheiro receberia, ouvia-os eu, ali, estupefacto, daquela mulher ainda jovem que se apressava em saltar duma ligação que a sufocava. E toda aquela viagem, longas cinco horas, foi um não acabar de um livro de queixas.
Quase no final da viagem, já o Tejo espelhava todo o rigor do azul da tarde e as chaminés das refinarias salpicavam de fumo branco o ar limpo, aquela mulher, na pose de quem interpreta o fado errado, pronunciou:
- Tenho de fugir, ele cerca-me, não me deixa viver. Até mandou alguém esperar-me à estação para que eu não me desviasse!
- Mas assim, não pode viver. Tem de fazer qualquer coisa. Porque não acaba com tudo duma vez?
- Estaria perdida. Ele nunca mais me deixaria viver a minha vida. Para onde fosse, ele havia de seguir no meu encalço.
Entretanto, a nossa composição entrou em Santa Apolónia. Olho para o exterior a examinar as pessoas e o espaço.
A jovem mulher espreitou também e de imediato reconheceu alguém na estação e desabafou:
- Eu vi logo que ele não confiava em mim. Veio o meu sogro vigiar-me.
- Pode ser apenas para ser simpático...- disse eu para a animar.
Mas ela parecia contrariada. Depois o comboio imobilizou-se e saímos.
Ela, ignorando-me totalmente, desceu e dirigiu-se a um cavalheiro que vestia gabardina de tom cinza e boné de fazenda e efusivamente se abraçaram e entabularam uma conversa amena.
Perplexo, contemplei a cena e passei em revista todas as lamentações ouvidas daquela mulher. E fiquei atónito.
Perplexo, contemplei a cena e passei em revista todas as lamentações ouvidas daquela mulher. E fiquei atónito.
Ao passar por eles, ela esboçou um breve e discreto sinal com o olhar, como a pedir-me silêncio, enquanto prosseguia uma conversa familiar com o cavalheiro que dizia ser seu sogro.
E eu segui pensativo para mais umas longas horas de viagem.
Manuel Guimarães (1982) Odisseia da Memória
E eu segui pensativo para mais umas longas horas de viagem.
Manuel Guimarães (1982) Odisseia da Memória
2 comentários:
Seria sogro ( um grande abraço) ao sogro !!!, ele há coisas, que eu não percebo mesmo, se se sente aprisinada, porque o abraçou.
Coisas de mulheres.
Um beijo
Segunda-feira, Novembro de 1981. Talvez não fosse muito boa ideia aquela escapadela, mas o aceno a partir de Tavira fizera-a zarpar… E depois era bom poder dispor assim do tempo! Faltaria a poucas aulas e a Teresa tirava uns apontamentos óptimos: tudo controlado.
Carruagem quase deserta. Talvez tivesse feito mal em sentar-se próximo daqueles dois. Não eram um casal, com certeza. A mulher aparentava ser bem mais velha do que o rapaz e dava a ideia de não se ir calar nunca! Ele tinha o ar simpático de quem sabe ouvir. Era por certo um confidente involuntário. Estaria aborrecido? Relanceou o olhar. Parecia ouvir com muita atenção e com um ar um tanto sonhador… Talvez fosse escritor e aquele discurso precioso material transformável. Talvez fosse apenas o facto de a mulher não ser nada de deitar fora…
Impossível alhear-se daquele relato dolente que não lhe era dirigido, mas lhe chegava quase intacto. Impossível não crescer em incompreensão! Como podia ser? Ela jamais aguentaria uma vida assim! E reviu, suspirando, o plano todo: acabarem o curso, remodelarem o velho apartamento dos pais dele, viajar, casar, viajar; a seu tempo, dois, três filhos… e praia, muita praia, para compensar a troca do norte pelo sul…
(Afinal, a carruagem estava cheia... cheia de ilusões, algumas ainda não completamente perdidas...)
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