segunda-feira, julho 18, 2005

A Cidade Grande


Desceste na estação, atravessaste o átrio por entre rostos macilentos e ríspidos.
E ao fundo dos baixos degraus que desciam da estação, diante de ti, patenteou-se a longa e movimentada avenida.
Era um interminável fluir de táxis, autocarros, veículos de todas as marcas e feitios. E como tu, um formigueiro de passos apressados e firmes dispersava-se nas múltiplas encruzilhadas que dali se abriam.
Atravessaste a passadeira e entraste num snack de aspecto feio e abafado, atolado de clientes famintos. Exalava-se ali uma horrível amálgama de aromas. Chegaste-te com dificuldade ao balcão, pediste uma sanduíche e uma cerveja a um empregado calvo e gordo, de camisa branca, mas que o sujo dum dia de trabalho escurecia levemente. E veio a sanduíche envolta em plástico e a cerveja espumou no copo que ainda sabia a cloro. Instintivamente, embora tivesses tempo, tragaste, voraz, a sanduíche e a cerveja, empurrado pela pressa dos que te rodeavam. Depois, ficaste ali a ver o sôfrego apetite dos outros e a ouvir as estranhas modulações da tua língua, até habituares o ouvido. Pediste ainda um café.
- É uma bica? – disse o empregado.
- Sim, isso mesmo.
Ao saíres, foste abordado por dois sujeitos de aspecto duvidoso que te propunham negócio, um relógio, um revólver, qualquer coisa…
Mas, sem te intimidares, com a lição bem estudada, despachaste-os.
- Como conseguiste?
Bom, isso talvez tenha sido um pouco de sorte…Confessa! …Não reparaste que dois polícias assomavam na esquina, a uns vinte metros?
Entretanto, a tarde esgotava-se, e era possível ver, por detrás dos barracões que fechavam o Tejo, algumas cintilações de fogo dum sol que morria lá longe no oceano.
As luzes dos carros, dos candeeiros, as iluminações intermitentes de alguns anúncios davam uma cor irreal e feérica à cidade. O movimento, as luzes e os ruídos da cidade plasmavam-se numa mistura cinestésica estranha.
E foste seguindo avenida abaixo com o saco seguro pela alça ao ombro. Os teus passos eram largos e firmes. Tinhas apenas alguns minutos para fazeres essa distância.
Quando o esforço já te obrigava a abrandar, chegaste, enfim, ao Terreiro do Paço. Entraste na Estação fluvial e pediste bilhete para o Barreiro.
E foste atrás daquele cabisbaixo rebanho que regressava ao aconchego do lar na outra margem. Subiste a prancha, entraste no bojo da barcaça azul e ficaste junto à janela. E continuavam a entrar os passageiros, quase todos calados, uns de fatos puídos nas repartições públicas, outros com um ar mais informal, sem gravata, em casacas de ganga. Um ou outro casal trocava silêncios afectuosos, outros mais empolgados comentavam as peripécias do escritório ou da loja; outros, discretos, tocavam-se nas mãos e sorriam aguardando a satisfação do desejo, na privacidade daquele t2 que abre para a fábrica fumegante.
Olhaste a cidade que vestia as colinas, agora com colorações mais irreais, de cascata ou de presépio. E as fachadas brancas dos edifícios matizavam-se dos reflexos multicolores de néon.
E o cacilheiro balouçava docemente e o ronronar suave do motor e o borbulhar contido da água junto à ré faziam crescer aquela imensa dormência. E a pouco e pouco a imagem da cidade afundava-se mais nas margens do Tejo. E tu, reclinado, deixavas-te dormitar.
Chegaste, por fim, à outra margem. Lá longe, a neblina e os vapores sulfurosos, que as siderurgias lançavam, davam a este espaço a visão dantesca dum reino medonho.
Para trás ficava a cidade grande, branca e bela, voltada ao Tejo, agora vigiada por uma fria lua imensa e alva.
Manuel Guimarães, Odisseia da Memória (1982).

7 comentários:

Dra. Laura Alho disse...

Deixo um sorriso.

Beijo :) *

Vênus disse...

Olá Manuel,
Vim conhecer teu espaço e gostei muito.
Voltarei sempre!
Beijos!;)

Crepúsculo Maria da Graça Oliveira Gomes disse...

Olá Mnel isto tá a melhorar a olhos vistos, gosto muito da tua mudança em termos de escrita. E logo tu um prof de Português :)
Bjs

Maria Manuel disse...

Lisboa fica geralmente bem nas descrições. Mas aqui o mérito não é todo dela...

Anónimo disse...

Mui belo teu texto!
Como sempre, digno dos mais ilustres adjetivos.
Parabéns!

Menina Marota disse...

Retive na memória:

"...Olhaste a cidade que vestia as colinas, agora com colorações mais irreais, de cascata ou de presépio. E as fachadas brancas dos edifícios matizavam-se dos reflexos multicolores de néon."

Foi um prazer ler-te!

Um bom fim de semana :)

Amita disse...

Mais uma bela e rica descrição de vida. É um prazer ler-te. Bjos