segunda-feira, dezembro 12, 2005

O homem disse que ia abrir o livro

Chegaram todos,
Por trás da mesa apinhada de microfones
O homem sentou-se na cadeira e disse:
- Vou abrir o livro.

Depois fixou o olhar na câmara,
Levou a mão aos óculos,
Compô-los melhor
E começou a olhar para um papel branco
que tremia leve
na mão papuda.

-Vou abrir o livro!
repetiu e voltou a ler em silêncio o imenso
papiro branco
salpicado de sinais
e laivos de saliva.

E do outro lado da mesa,
Faiscante irrompia o cliquar das câmaras,
Dos telemóveis.
E quanto mais a onda mediática
Crescia mais o olhar fundo do homem se perdia
Na imensa brancura da folha
Branca.

Então, desfiou um interminável solilóquio
De caóticas sequências verbais
Que só pareciam coerentes
Porque seguiam a cadeia fónica dum discurso
blablablablablBLABLABLA!blablabah!!

De vez enquanto parava
Na esperança de ter arrancado algum aplauso.
Depois voltava:
- hoje vou abrir o livro.
E repetia um a um os gestos
Numa cadência cíclica.

Por fim,
O discurso fez-se noite
Obscura de razões
perdidas num silogismo qualquer.
E o livro aberto
Não tinha mais do que o acento esdrúxulo
Da catástrofe
Do homem que prometia abrir o livro.
M. Guimarães (2005)

4 comentários:

Luís Monteiro da Cunha disse...

Caro Manuel....
Quantas vezes já me aconteceu...
Querer abrir o livro... e este apenas me mostrar as alvas páginas, deixando-me com o sentimento esvaziado e a voz retorcida como bola em garganta.
Tudo o que queria dizer... se esfumara naquele momento...
Apenas resta uma plateia, ávida... um leitor... que não lê!

Boa semana

Abraço

Dra. Laura Alho disse...

Livro. Um grande amigo do homem.

Beijos *

Menina Marota disse...

Pedindo desculpa pela ausência destes dias, estive a ler o que tinha em falta. Com mais tempo comentarei melhor.
Deixo um abraço e continuação de boa semana ;)

Poesia Portuguesa disse...

A indiferença ou a ignorância, perante o interlocutor?
Gostei de te ler.
Um abraço e resto de boa semana ;)

(P.S - Desculpa a ausência)