- Amanhã esteja pronta às nove.
- Sim, senhor abade.
Depois, voltou para casa e pediu à filha que lesse mais uma vez a lista de todas as coisas que pediam.
-Já temos tudo. Só não sei o que é isso do cionário. Tu não sabes o que é, Mila?
E ela, de olhos grandes, olhou perplexa e pensou o que seria esse cionário.
O dia seguinte chegou. A mala pequena de folha vermelha de pequenas estilizações geométricas estava cheia. E o Nel, vestido com o fatinho escuro do exame da quarta e os sapatos esfolados da brincadeira, ficou à espera da ordem de partida.
Depois subiram a calçada, a mãe, à frente com a mala e um saco grande de pano com as roupas para a cama. O padre Bento já se encontrava junto ao seu Ford Cortina. Acomodados, desceram calçada abaixo, por baixo das ramadas de Carreira, de folhas vermelhas e salpicadas de cal. O carro rolou veloz pela estrada de asfalto e, diante dos olhos do pequeno, acomodado no banco de trás, iam passando pessoas, casas, árvores que a sua memória visual estranhava.
- Vamos por Serafão, tenho de ir lá buscar uns rapazes dum compadre meu. Depois, passamos por Fafe e antes do meio-dia já lá estaremos.
Em Serafão entraram os dois moços. Um mais velhito e outro da idade de Nel. Olharam uns para os outros e foi difícil encontrarem um tema que os aproximasse.
De dentro da taberna, quando o padre Bento estava para arrancar, veio um homem gorducho e rosado que recomendou:
- Esses malandros que não me gastem o dinheiro à toa! Quero fazer deles uns homens!
- Sossega, Monteiro, que os teus moços hão-de sair de lá uns homens, se Deus não os quiser para Ele.
E o carro arrancou ligeiro e seguiu galgando a sinuosa fita negra do asfalto. Pouco depois, já o casario de Fafe se ajuntava no alto sobranceiro ao vale do rio Vizela. Diante da livraria, na praça principal, parou. Venha daí senhora Maria, vamos lá ver se encontramos o tal Dicionário.
Afinal, o cionário era um livro! Um volumoso e pesado livro! O mistério desfez-se, depois, quando se abriu com aquelas letras miúdas alinhadas pela página abaixo e encimadas duma letra maiúscula que o malabarista editor requintou. Vinha ainda com um cheiro forte de tinta da impressão. Tempos mais tarde, com olhos devassos, à socapa, catariam os rapazes nas imensas páginas aquelas palavras interditas e sujas da brejeirice.
Por fim, assomaram à entrada duma grande casa que duas enormes tílias ensombravam. O carro contornou a estátua branca rodeada dum pequeno lago azul, e plantada no meio do largo fronteiro à grande casa amarela, e foi parar diante duma porta enorme com vidros coloridos de igreja.
Um padre de batina negra veio recebê-los e entraram.
Pouco depois, o menino estava com o rosto colado à vidraça, no segundo andar, a ver o carro do padre que regressava a casa com a sua mãe. Enquanto duas gordas lágrimas deslizavam nas faces um soluço forte subia-lhe pela garganta.
À noite, não ouviria mais a voz doce da mãe que o mandava dormir no aconchego da cama de pinho.
Manuel Guimarães, Odisseia da Memória(2005).
9 comentários:
Adorei este teu conto. Relembra tempos passados, aldeias distantes, isoladas, vivendo do que a terra dava. Para se ser alguém... só o seminário. Um abraço, Manuel, e uma flor
Na simplicidade deste conto do menino enviado para o seminário para " dar gente" está a história de gerações inteiras. Adorei o teu conto, Manel, continua, fala-nos dessas histórias de vida que todos conhecemos mas que se escondem nas nossas memórias. Beijo.
Adorei este teu conto. Dizem que quando uma cena/conto nos faz lacrimejar é porque atingiu a perfeição. Este teve o condão de fazer verter algumas lágrimas pelo meu rosto.
E o menino enviado para o seminário para " dar gente" "deu gente" e é um ser humano admirável .
Tudo de bom.
Um belíssimo conto, eu deliciei-me porque sou uma devoradora de contos. Eu própria já escrevi os meus contos mas ainda não tive "coragem" de os colocar online. Beijos, fica bem!
Adorei ler-te.
Já tinha saudades *
Revi-me nas palavras, sonhei o momento, no tempo e espaço.
De tão analfabetos, de tão ignorantes que eramos,que tudo nos deslumbrava, mesmo o facto de andar de automóvel com as árvores a fugir. E os olhos esbugalhados, apesar de tristes, que tudo queriam absorver e apreender, de tão belo e inusitado que se nos apresentavam.
Belo momento e bem contado, este.
Abraço
Deixei-me ficar aqui a ler-te... porque gostei...
Um abraço ;)
Oi!
Desculpe-me pelo sumiço!
Dpois de tanto tempo estou de volta.
Teus textos continuam tão belos quanto antes.
Adorei o conto!
Parabéns!
Odisseia da memória, belo título para uma história magníficamente bem escrita, que necessariamente terá outros momentos.
JBS
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