quarta-feira, outubro 12, 2005

Verdes anos

- Amanhã esteja pronta às nove.
- Sim, senhor abade.
Depois, voltou para casa e pediu à filha que lesse mais uma vez a lista de todas as coisas que pediam.
-Já temos tudo. Só não sei o que é isso do cionário. Tu não sabes o que é, Mila?
E ela, de olhos grandes, olhou perplexa e pensou o que seria esse cionário.
O dia seguinte chegou. A mala pequena de folha vermelha de pequenas estilizações geométricas estava cheia. E o Nel, vestido com o fatinho escuro do exame da quarta e os sapatos esfolados da brincadeira, ficou à espera da ordem de partida.
Depois subiram a calçada, a mãe, à frente com a mala e um saco grande de pano com as roupas para a cama. O padre Bento já se encontrava junto ao seu Ford Cortina. Acomodados, desceram calçada abaixo, por baixo das ramadas de Carreira, de folhas vermelhas e salpicadas de cal. O carro rolou veloz pela estrada de asfalto e, diante dos olhos do pequeno, acomodado no banco de trás, iam passando pessoas, casas, árvores que a sua memória visual estranhava.
- Vamos por Serafão, tenho de ir lá buscar uns rapazes dum compadre meu. Depois, passamos por Fafe e antes do meio-dia já lá estaremos.
Em Serafão entraram os dois moços. Um mais velhito e outro da idade de Nel. Olharam uns para os outros e foi difícil encontrarem um tema que os aproximasse.
De dentro da taberna, quando o padre Bento estava para arrancar, veio um homem gorducho e rosado que recomendou:
- Esses malandros que não me gastem o dinheiro à toa! Quero fazer deles uns homens!
- Sossega, Monteiro, que os teus moços hão-de sair de lá uns homens, se Deus não os quiser para Ele.
E o carro arrancou ligeiro e seguiu galgando a sinuosa fita negra do asfalto. Pouco depois, já o casario de Fafe se ajuntava no alto sobranceiro ao vale do rio Vizela. Diante da livraria, na praça principal, parou. Venha daí senhora Maria, vamos lá ver se encontramos o tal Dicionário.
Afinal, o cionário era um livro! Um volumoso e pesado livro! O mistério desfez-se, depois, quando se abriu com aquelas letras miúdas alinhadas pela página abaixo e encimadas duma letra maiúscula que o malabarista editor requintou. Vinha ainda com um cheiro forte de tinta da impressão. Tempos mais tarde, com olhos devassos, à socapa, catariam os rapazes nas imensas páginas aquelas palavras interditas e sujas da brejeirice.
Por fim, assomaram à entrada duma grande casa que duas enormes tílias ensombravam. O carro contornou a estátua branca rodeada dum pequeno lago azul, e plantada no meio do largo fronteiro à grande casa amarela, e foi parar diante duma porta enorme com vidros coloridos de igreja.
Um padre de batina negra veio recebê-los e entraram.
Pouco depois, o menino estava com o rosto colado à vidraça, no segundo andar, a ver o carro do padre que regressava a casa com a sua mãe. Enquanto duas gordas lágrimas deslizavam nas faces um soluço forte subia-lhe pela garganta.
À noite, não ouviria mais a voz doce da mãe que o mandava dormir no aconchego da cama de pinho.
Manuel Guimarães, Odisseia da Memória(2005).

9 comentários:

Amita disse...

Adorei este teu conto. Relembra tempos passados, aldeias distantes, isoladas, vivendo do que a terra dava. Para se ser alguém... só o seminário. Um abraço, Manuel, e uma flor

Anónimo disse...

Na simplicidade deste conto do menino enviado para o seminário para " dar gente" está a história de gerações inteiras. Adorei o teu conto, Manel, continua, fala-nos dessas histórias de vida que todos conhecemos mas que se escondem nas nossas memórias. Beijo.

Anónimo disse...

Adorei este teu conto. Dizem que quando uma cena/conto nos faz lacrimejar é porque atingiu a perfeição. Este teve o condão de fazer verter algumas lágrimas pelo meu rosto.
E o menino enviado para o seminário para " dar gente" "deu gente" e é um ser humano admirável .
Tudo de bom.

Anónimo disse...

Um belíssimo conto, eu deliciei-me porque sou uma devoradora de contos. Eu própria já escrevi os meus contos mas ainda não tive "coragem" de os colocar online. Beijos, fica bem!

Dra. Laura Alho disse...

Adorei ler-te.
Já tinha saudades *

Luís Monteiro da Cunha disse...

Revi-me nas palavras, sonhei o momento, no tempo e espaço.
De tão analfabetos, de tão ignorantes que eramos,que tudo nos deslumbrava, mesmo o facto de andar de automóvel com as árvores a fugir. E os olhos esbugalhados, apesar de tristes, que tudo queriam absorver e apreender, de tão belo e inusitado que se nos apresentavam.

Belo momento e bem contado, este.

Abraço

Menina Marota disse...

Deixei-me ficar aqui a ler-te... porque gostei...

Um abraço ;)

Anónimo disse...

Oi!
Desculpe-me pelo sumiço!
Dpois de tanto tempo estou de volta.
Teus textos continuam tão belos quanto antes.
Adorei o conto!
Parabéns!

Anónimo disse...

Odisseia da memória, belo título para uma história magníficamente bem escrita, que necessariamente terá outros momentos.
JBS