domingo, agosto 14, 2005

O papagaio que queria ser gaivota



Preso ao cadeado e empoleirado no cepo, o velho papagaio mirava ao fundo, para além da avenida, o areal da praia, e o bater incansável das ondas.
- Uah!.. uah! uahhh…- gritava de quando em vez o papagaio azul e amarelo. De vez em quando uma risada trocista:
- Ahh, ahh, ahh...! – o som gutural tinha a conotação de desprezo e raiva.
Mas intrigante era o primeiro som. Donde lhe veio a inspiração? Que animal tão inapto era aquele que em vez das habilidades vocais conformes à sua espécie, apenas aturdia os ares com sons ininteligíveis e pouco consentâneos com a sua ancestral amestração?
Numa tarde, quando a ameaça de mau tempo empurrou para terra as voláteis gaivotas, reparei na coincidência. Os sons angustiados do papagaio eram muito semelhantes aos das gaivotas.
Será que o velho papagaio queria ser gaivota? Abandonar de vez o seu poleiro, libertar-se das correntes que lhe tolhem o voo e prescindir da ração de fruta e da água quente do sol no copo de alumínio?
E se por momentos o papagaio se libertasse e irrompesse no ar às voltas e se elevasse sobre a frescura das águas e mirasse sob o seu azul translúcido as penumbras prateadas dos cardumes?
E se arrastado pela brisa sobrevoasse a multidão estirada ao sol e se deslumbrasse com a paleta interminável das cores dos guarda-sóis?
E se um arrojo de liberdade o levasse para além do horizonte, muito para além daquela varanda ferozmente branca, muito longe da mão do dono que lhe cochichava palavrões e lhe dava fruta e água, então, nesse espaço imenso, sem anilhas, sem cadeado, dono dos mais belos poleiros em árvores floridas pronunciaria os sons ajustados à sua ânsia de ser novamente um pássaro livre.
Mas os dias do papagaio eram entregues àquele cenário monótono, ao rodar das horas, ao revezar-se dos banhistas e das marés, à imensa inveja do voo livre e imprevisível das gaivotas. Por isso, nada mais lhe resta senão imitar o som liberto das aves que dia a dia o desafiam para o grande voo.
Manuel Guimarães, Passar a Sul (2005).

5 comentários:

Crepúsculo Maria da Graça Oliveira Gomes disse...

Olá Manuel, ainda bem que chegaste e foi em grande pois este post é lindissimo, pois também vindo da praia, cheio de inspiração :) qualquer um está assim.
Beijos

Maria Manuel disse...

Triste sina, a do bicho, que deu um belo texto!

Dra. Laura Alho disse...

E qual de nós já não quis ser gaivota? Eu já...

Regressei :)
Um beijinho grande *

Vênus disse...

Olá
Passei pra deixar um beijo e desejar bom final de semana!
Bye

Anónimo disse...

Olá Manuel. Que lindo texto poético nos ofereces. Com uma corrente não há liberdade mas há sonho e este, por sua vez, é livre. Bjinhos e bom Domingo
Amita//brancoepreto.blogs.sapo.pt