terça-feira, junho 07, 2005

O senhor tem tosse?



imagem retirada de Google (autor desconhecido)


Este episódio tem uma base real, deu-se com um cidadão contribuinte - o senhor Silva - , com todas as suas obrigações fiscais em dia e que é um adepto de um estado social que, porque cobra, deve retribuir com serviços de qualidade.

«São seis da manhã. A noite foi horrível, para o senhor Silva, não pregou olho. Era aquele peso imenso no peito, quase esmagado, a respiração difícil. Parecia que os batimentos cardíacos se lhe emaranhavam em ritmos desconexos. E então era aquela dor silenciosa mas pungente que tomava conta de todos os seus músculos. Era como se mãos invisíveis lhe apertassem o peito e o pescoço. Dificilmente um sopro de ar passava sem deixar uma marca dolorosa.
Não restava mais nada. Meio zonzo de sono e cansaço, tentou refrescar o rosto e lembrou-se do SAP aberto ali perto, no hospital da vila.
Vestiu-se e dirigiu-se às Urgências.
Fez a ficha.
Passada uma hora, na sala deserta, uma funcionária com a ficha na mão pronunciava o seu nome em voz alta.
- É na sala dois. O médico está à sua espera.
Então, apesar do mal-estar do corpo, sentiu um pouco de ânimo. Isto afinal funciona! - pensou.
- Vá sente-se. Diga lá o que se passa!
Então, o senhor Silva desfiou a sua história, a sua dor de um peito apertado, dos músculos doridos e presos, da imensa aflição que tomava conta de todo o seu corpo...
- E o senhor tem tido tosse?
- Não, senhor doutor. Não tenho tido.
- Custa-lhe respirar. É?
- Sim, mas não estou constipado, não tenho tosse, nem expectoração...
O médico pegou no estetoscópio e pediu para ele levantar a camisa. Auscultou-o muito apressadamente.
Depois sentenciou:
-Ah!...bom, bom, bom...O senhor tem tido tosse!
-Não, senhor doutor, há mais de dois meses que não tenho.
- Olhe, isto não é nada. Vai ver que isso passa.
Ele bebeu aquelas palavras com o desencanto de quem vê perder-se o último comboio. Ao contrário de outros momentos, a dor não diminuiu, cresceu, agora alimentada com a desconfiança e o desalento.
- Olhe, vou-lhe receitar um xarope. Tome-o duas vezes por dia até ficar bom! - e garatujou no papel timbrado o nome do fármaco.
Enquanto isso, o nosso doente olhou por baixo da mesa e viu que o médico estava com o pijama por baixo da bata e calçava uns chinelos de quarto.
Seguidamente, depois de um indisfarçável bocejo, o médico pronunciou:
- Pode ir. Você tem tosse, não tem?
Sem um exame, sem uma análise mais atenta do que se passava consigo, vencido, o senhor Silva saiu do consultório com o papel na mão, espantado, sem acreditar que trazia na mão, afinal, a receita para um xarope da tosse.
Duas horas depois, voltou às Urgências e foi encaminhado para o hospital distrital, onde lhe diagnosticaram uma inflamção no diafragma. »

Hoje, o senhor Silva tem na sua farmácia na casa de banho, a caixa já amarelecida do xarope da tosse como troféu duma noite de aflição e de um encontro imediato com a incompetência, em que, para além dos seus males, lhe inventaram uma tosse.
Manuel Sousa (Publicado no jornal Preto no Branco, 2005)

4 comentários:

Dra. Laura Alho disse...

"Quando não se sabe, inventa-se!"
Mas nem sempre devíamos levar à letra este ditado popular.

Ainda bem que não tenho tosse :P

Beijinho grande *

Anónimo disse...

Passei para agradecer as palavras de parabéns pelo aniversário.
De resto... o Palavras Apenas terminou a sua caminhada. :)
Bjitos

Unknown disse...

Pobre sr Silva e quanto isistiram por este nosso lindo Portugal.Beijo Manel

vma disse...

Ao Sr Silva sai-lhe a sorte grande, a "Médica" podia-lhe ter acabado com a tosse.