quarta-feira, junho 14, 2006

Foi Feitiço

O soldado número 387, impedido do senhor capitão Loureiro, prometeu a si mesmo que havia de conhecer alguém interessante naquele fim-de-semana em que ficou dispensado do serviço. Era uma agradável tarde de sábado. Aprumou-se, as botas reluziam da graxa, o boné em forma de barco voltado, e confiante nos seus vinte e dois esperançados anos saiu do quartel.
Andou um pouco, meteu-se num eléctrico e só saiu no Bairro Alto. Calcorreou as ruas em passo lento, porque a tarde ainda era jovem e era preciso saborear aquela licença com todo o prazer. Depois balanceou o olhar pelas montras e lembrou-se de que nada daquilo encontrava na sua pacata aldeia do Minho. A mercearia do Tem-tudo era o único estabelecimento de comércio e nada tinha em comum com os Armazéns do Chiado nem com as lojas do Grandela.
Quando a sede apertou, lembrou-se de que uma cerveja fresca iria mesmo a calhar. Apalpou os bolsos, a carteira ainda lá estava, e dentro dela as moedas do pré e uns trocos com que o generoso capitão o premiava pela sua solícita vassalagem.
Na cervejaria Império, o ambiente estava calmo, parecia um lugar fresco e pouco movimentado. Entrou, sentou-se numa mesa, próximo da porta. Veio uma empregada, moça ainda, com feições roliças, de rosto corado e o cabelo com algumas madeixas mais claras e preso o restante num puxo.
- Então o que vai ser?
- Uma cerveja, fresca. – E nesse preciso momento o olhar do soldado cruzou-se com o da empregada.
Sentiu Augusto uma sensação completamente diferente, dir-se-ia que ficou desligado de tudo, excepto daqueles olhos negros que pareciam trespassá-lo e denunciar-lhe toda a insegurança.
- Prá onde estás a olhar, ó magala? Nunca viste?
- Nunca vi…não nunca vi…
- É mais outro a armar-se em engraçadinho. Deixam as namoradas na terra e pensam que vêm prá aqui enganar as sopeiras.
- Num me leve a mal mas nunca vi uma moça tão bem apresentada.
Ela foi ao balcão trouxe-lhe a cerveja e um pires com tremoços e colocou-os na fria mesa de mármore:
- São dois mil reis.
Ele tirou da carteira e deixou sobre a mesa duas peças prateadas.
- Olha, agora não te engasgues! A tua mãezinha já te deixa beber cerveja? – e riu-se enquanto recolhia as moedas.
Augusto não ouvia nenhuma das provocações. Apenas olhava fascinado a moçoila iluminada pelo seu branquíssimo avental.
- Amanhã não tens folga?
- Mas a confiança já te dá p’ra isso?
- Então?
- Deixa-te de conversas, estou a trabalhar, tenho mais que fazer que aturar meninos! - e voltou costas e foi lavar uma louça atrás do balcão.
Ele ficou a mirá-la, enquanto bebia sequioso a sua cerveja.
De quando em vez, ela observava-o à socapa, para não ser apanhada em flagrante, mas não impediu que os seus olhares mais uma vez se cruzassem.
Depois ele saiu, sem antes saudar os presentes, levantando o boné respeitosamente e lançando um olhar devoto para a rapariga.
Ela apercebeu-se de que o magalinha tinha ficado impressionado.
Já na camarata, deitado sobre a cama, os olhos voltados para o tecto, os braços por baixo da cabeça, imaginava a mocinha com os reluzentes olhitos negros, o rosto muito branco e rosado, o corpo roliço…
- Tenho de lá voltar – pensou.
(Continua) Manuel Guimarães, Foi Feitiço (conto).

1 comentário:

Anónimo disse...

Parabéns. Mais um texto muito bonito. Teu blog está a ficar cada dia melhor. É sempre uma surpresa agradável q temos cada vez q acessamos tua página e nos deparamos com tão lindos textos.
Obrigada por dividir conosco sua sapiência e seu talento poético.
Um abraço!