segunda-feira, outubro 31, 2005

5000

É apenas um número, mas tem um significado para mim: esta é uma maneira de interagir com o mundo. Através desta página vieram pessoas de múltiplos espaços, alguns conhecidos e amigos, muitos desconhecidos, alguns destes se tornaram amigos virtuais. O que mais importou é que por palavras, simples e desinteressadas tentei estar com o mundo, interagir com ele, acompanhá-lo nas suas tristezas, saudar os caminhos novos que se abrem.
Porque tudo isto me parece válido, continuarei, mesmo sabendo que há momentos em que o tempo e a disposição não ajudam.
Por isso saúdo todos aqueles que me visitaram e me visitarão. É para todos vós que mantenho este espaço.

A grande nau

Minha vida é uma barca imensa

Saiu do porto
Em dia de névoa
Bem cedo

E foram entrando
Um a um todos os companheiros
Desta errante viagem

Umas vezes o sol brilha
E límpido o horizonte se revela
Matizado da profusão de cores
E todas as palmeiras se vergam obedientes
E todas as ostras se abrem em pérola
E todos os aromas
São ritmos vivos e quentes

Mas outras
Debaixo duma cerração densa e húmida
Tocamos o céu a escorrer
De tinta em cinza
Que nos aperta cada vez mais
Contra o casco duro desta frágil embarcação.

E mais pesado ainda
Quando intrusos irrompem
No espaço seguro do leito

E mais desolada continua
Vogando
Quando a abandonam
Aqueles que a ajudam
na tormenta.
M. Guimarães (2005)

quarta-feira, outubro 12, 2005

Verdes anos

- Amanhã esteja pronta às nove.
- Sim, senhor abade.
Depois, voltou para casa e pediu à filha que lesse mais uma vez a lista de todas as coisas que pediam.
-Já temos tudo. Só não sei o que é isso do cionário. Tu não sabes o que é, Mila?
E ela, de olhos grandes, olhou perplexa e pensou o que seria esse cionário.
O dia seguinte chegou. A mala pequena de folha vermelha de pequenas estilizações geométricas estava cheia. E o Nel, vestido com o fatinho escuro do exame da quarta e os sapatos esfolados da brincadeira, ficou à espera da ordem de partida.
Depois subiram a calçada, a mãe, à frente com a mala e um saco grande de pano com as roupas para a cama. O padre Bento já se encontrava junto ao seu Ford Cortina. Acomodados, desceram calçada abaixo, por baixo das ramadas de Carreira, de folhas vermelhas e salpicadas de cal. O carro rolou veloz pela estrada de asfalto e, diante dos olhos do pequeno, acomodado no banco de trás, iam passando pessoas, casas, árvores que a sua memória visual estranhava.
- Vamos por Serafão, tenho de ir lá buscar uns rapazes dum compadre meu. Depois, passamos por Fafe e antes do meio-dia já lá estaremos.
Em Serafão entraram os dois moços. Um mais velhito e outro da idade de Nel. Olharam uns para os outros e foi difícil encontrarem um tema que os aproximasse.
De dentro da taberna, quando o padre Bento estava para arrancar, veio um homem gorducho e rosado que recomendou:
- Esses malandros que não me gastem o dinheiro à toa! Quero fazer deles uns homens!
- Sossega, Monteiro, que os teus moços hão-de sair de lá uns homens, se Deus não os quiser para Ele.
E o carro arrancou ligeiro e seguiu galgando a sinuosa fita negra do asfalto. Pouco depois, já o casario de Fafe se ajuntava no alto sobranceiro ao vale do rio Vizela. Diante da livraria, na praça principal, parou. Venha daí senhora Maria, vamos lá ver se encontramos o tal Dicionário.
Afinal, o cionário era um livro! Um volumoso e pesado livro! O mistério desfez-se, depois, quando se abriu com aquelas letras miúdas alinhadas pela página abaixo e encimadas duma letra maiúscula que o malabarista editor requintou. Vinha ainda com um cheiro forte de tinta da impressão. Tempos mais tarde, com olhos devassos, à socapa, catariam os rapazes nas imensas páginas aquelas palavras interditas e sujas da brejeirice.
Por fim, assomaram à entrada duma grande casa que duas enormes tílias ensombravam. O carro contornou a estátua branca rodeada dum pequeno lago azul, e plantada no meio do largo fronteiro à grande casa amarela, e foi parar diante duma porta enorme com vidros coloridos de igreja.
Um padre de batina negra veio recebê-los e entraram.
Pouco depois, o menino estava com o rosto colado à vidraça, no segundo andar, a ver o carro do padre que regressava a casa com a sua mãe. Enquanto duas gordas lágrimas deslizavam nas faces um soluço forte subia-lhe pela garganta.
À noite, não ouviria mais a voz doce da mãe que o mandava dormir no aconchego da cama de pinho.
Manuel Guimarães, Odisseia da Memória(2005).

quinta-feira, outubro 06, 2005

Ultimatum Futurista


Como nos fazem falta, hoje, a irreverência e a rebeldia da geração do Orpheu!


ÀS GERAÇÕES PORTUGUESAS DO SÉC. XXI


Acabemos com este maelstrom de chá morno!
Mandem descascar batatas simbólicas a quem disser que não há tempo para a criação!
Transformem em bonecos de palha todos os pessimistas e desiludidos!
Despejem caixotes de lixo à porta dos que sofrem da impotência de criar!
Rejeitem o sentimento de insuficiência da nossa época!
Cultivem o amor do perigo, o hábito da energia e da ousadia!
Virem contra a parede todos os alcoviteiros e invejosos do dinamismo!
Declarem guerra aos rotineiros e aos cultores do hipnotismo!
Livrem-se da choldra provinciana e da safardanagem intelectual!
Defendam a fé da profissão contra atmosferas de tédio ou qualquer resignação!
Façam com que educar não signifique burocratizar!
Sujeitem a operação cirúrgica todos os reumatismos espirituais!
Mandem para a sucata todas as ideias e opiniões fixas!
Mostrem que a geração portuguesa do século XXI dispõe de toda a força criadora e construtiva!Atirem-se independentes prá sublime brutalidade da vida!
Dispensem todas as teorias passadistas!
Criem o espírito de aventura e matem todos os sentimentos passivos!
Desencadeiem uma guerra sem tréguas contra todos os "botas de elástico"!
Coloquem as vossas vidas sob a influência de astros divertidos!
Desafiem e desrespeitem todos os astros sérios deste mundo!
Incendeiem os vossos cérebros com um projecto futurista!
Criem a vossa experiência e sereis os maiores!


Morram todos os derrotismos! Morram! PIM!

J o s é d e A l m a d a N e g r e i r o s
P O E T A F U T U R I S T A E T U D O

segunda-feira, outubro 03, 2005

Eclipse 2

Mais um trecho deste fantástico fenómeno astronómico. Pena a máquina não ter permitido algo mais definido.

Eclipse


E foi assim, a lua passeou-se diante do sol e este turbou-se ligeiramente, enquanto um vento frio fazia balouçar as ramagens das árvores.