quarta-feira, agosto 31, 2005

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- Caros companheiros
camaradas da longa estrada
venho aqui
com toda a veemência dizer-vos
que a pátria está em perigo

que de todos os cantos deste
paraíso abandonado
espreitam ameaças
há a iminência da república
ser destruída
e vilipendiada.

Por isso
apresento-me e sacrifico-me por vós
depois de ter pairado sobre mim
o véu da morte.

E o arrazoado prosseguia
em tom ronceiro e gasto.
Então, uma criança puxou
o vestido da mãe
e protestou:
- mãe, a bolacha tem mofo,
já não presta.

- Come, filho, é o que há.
E na mão mimosa do menino
a velha bolacha se esboroou e ficou
em nada!
M.Guimarães (2005)


PS. Porque não nos conformamos com o absentismo de alguns e a insanidade de muitos.

terça-feira, agosto 30, 2005

Final de Verão

O que dizer
quando se regressa aos espaços
de sempre
viciados de nós
pisados da nossa presença

e sabemos que da ausência
nada de novo brotou do solo exausto
que na penumbra de árvores transidas
de folhas enroladas
a aragem sopra ainda asperamente seca
e tudo se abate numa calmaria entediante.

Enquanto nas entrelinhas dos bizarros boletins
a sede se agiganta
e os pássaros doentes estilhaçam
os céus com gritos febris como pedras

Eu recolhido na sombra de gestos defensivos
aguardo que a amenidade doce da brisa
suavize o ar
tempere o sol ardente
e adoce os figos
hirtos e verdes
e os cachos enloureçam
de doce mosto.
Manuel Guimarães (2005)

quarta-feira, agosto 24, 2005

Um pouco de mar


A simplicidade do quadro. De manhã, o areal livre, a água fresca, a paisagem desimpedida. Para gozar o Algarve é preciso acordar cedo e não temer os sinais do tempo. Qualquer ameaça de tempestade é apenas e tão só uma ameaça.
Mas era precisamente quando os elementos se conjugavam que tudo aquilo fazia mais sentido e me relaxava por completo, lá isso era!

domingo, agosto 21, 2005

Dissolvência

Era um mundo compacto
Cheio
O verde revestia o castanho do húmus
As ervas lanceoladas apontavam o ar limpo
Flores lilases
Brancas, amarelas, azuis
Ponteavam o verde.
O musgo aveludado adoçava a aspereza dos granitos.
Hercúleas as formigas arrastavam
Toneladas de sementes
Por córregos intermináveis.

O azul do céu e uma luz limpa e exacta
Iluminava
Nos tons perfeitos as cores da vida
Cortada apenas pelo som estridente
Dum pássaro em voo rasgado.


Mas eis que um turbilhão de chamas
Avança numa surdina medonha
Galopando veredas fora.
Cerca as árvores, envolve-as, devora-as insaciável
E deixa-as como espectros sombrios e tristes.

Por fim,
Fica o cheiro abafado do fumo
As cores mortais
Da paisagem toldada de névoa
Sufocante.
E dentro de mim a dor de sentir
O corpo da terra destroçado
Num mar de chamas.

Manuel Guimarães (2005)

domingo, agosto 14, 2005

O papagaio que queria ser gaivota



Preso ao cadeado e empoleirado no cepo, o velho papagaio mirava ao fundo, para além da avenida, o areal da praia, e o bater incansável das ondas.
- Uah!.. uah! uahhh…- gritava de quando em vez o papagaio azul e amarelo. De vez em quando uma risada trocista:
- Ahh, ahh, ahh...! – o som gutural tinha a conotação de desprezo e raiva.
Mas intrigante era o primeiro som. Donde lhe veio a inspiração? Que animal tão inapto era aquele que em vez das habilidades vocais conformes à sua espécie, apenas aturdia os ares com sons ininteligíveis e pouco consentâneos com a sua ancestral amestração?
Numa tarde, quando a ameaça de mau tempo empurrou para terra as voláteis gaivotas, reparei na coincidência. Os sons angustiados do papagaio eram muito semelhantes aos das gaivotas.
Será que o velho papagaio queria ser gaivota? Abandonar de vez o seu poleiro, libertar-se das correntes que lhe tolhem o voo e prescindir da ração de fruta e da água quente do sol no copo de alumínio?
E se por momentos o papagaio se libertasse e irrompesse no ar às voltas e se elevasse sobre a frescura das águas e mirasse sob o seu azul translúcido as penumbras prateadas dos cardumes?
E se arrastado pela brisa sobrevoasse a multidão estirada ao sol e se deslumbrasse com a paleta interminável das cores dos guarda-sóis?
E se um arrojo de liberdade o levasse para além do horizonte, muito para além daquela varanda ferozmente branca, muito longe da mão do dono que lhe cochichava palavrões e lhe dava fruta e água, então, nesse espaço imenso, sem anilhas, sem cadeado, dono dos mais belos poleiros em árvores floridas pronunciaria os sons ajustados à sua ânsia de ser novamente um pássaro livre.
Mas os dias do papagaio eram entregues àquele cenário monótono, ao rodar das horas, ao revezar-se dos banhistas e das marés, à imensa inveja do voo livre e imprevisível das gaivotas. Por isso, nada mais lhe resta senão imitar o som liberto das aves que dia a dia o desafiam para o grande voo.
Manuel Guimarães, Passar a Sul (2005).

segunda-feira, agosto 08, 2005

La rentrée

Depois de uma boa estirada ao voltante do meu possante saxo, eis-me de novo em casa. Lar doce lar!
E apetecia-me falar de política. Como gostaria de enaltecer algum promissor candidato a PR. Alguma personalidade catalisadora de todas as energias e criasse as sinergias necessárias, personalidade grata que tivesse ideias, carisma, élan, charme (homem, ou mulher - porque nesta fase da evolução do homo portucalensis, as mulheres também são gente!!!). Alguém que nos fizesse esquecer a má economia, os maus políticos, os desastres que todos os dias nos alagam os olhos de água.
Mas, logro dos logros! Dois senadores que já esgotaram todas as suas poções «mágicas» (teriam sido?) apresentam-se agora como os guardiões do templo.
Meus amigos, o templo será roubado! E se não for será distribuído a retalho pela canalha militante que enxameia a nossa vida pública.
Por tudo isso,«mea culpa», votei com Sócrates, mas não me revejo na palhaçada para que caminha a coisa pública. Nem umas merecidas e parcas férias me adoçaram a língua, porque nada pode adoçar a amargura de saber que o círculo de giz em que se fechou a «nossa elite política» abarca um punhado de compadres que vão todos às mesmas festas, e bebem do mesmo «champanhe», importado, como exige a etiqueta.
Por isso, a minha intenção é, a não mudar o cenário, de não contribuir com o meu voto para a beatificação de mortos vivos.
Amen.